sexta-feira, 30 de maio de 2008

Amor

Fotografia de Margarida Elias.
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Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

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Luís de Camões

Notas sobre a Conjuntura da Década de 80


Ilustração de Rafael Bordalo Pinheiro (O António Maria, 1880).
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Múltiplos acontecimentos marcaram os anos de 1880, transformando a realidade vivida pelos portugueses a vários níveis. O tempo da Regeneração terminava, sendo a cena política cada vez mais dominada pelo rotativismo entre o Partido Regenerador e Progressista. Outros ideais entravam em cena, dando o republicanismo provas de força durante os festejos do Tricentenário de Camões (1880). No ano seguinte (1881), Oliveira Martins publicou o Portugal Contemporâneo, livro que tratava da história da Monarquia Constitucional. Na sua análise da situação portuguesa mostrava-se pessimista, apresentando um quadro de desorganização e crise de valores: «Eu vejo – não vêem todos? – uma decadência no carácter e uma desnacionalização na cultura». A situação de crise política agravava-se cada vez mais. Portugal procurava afirmar a sua posição nas antigas colónias, nomeadamente em África, o que esteve na origem da expedição de Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens e, consequentemente, na publicação do «Mapa Cor-de-Rosa» (1886), que pretendia demarcar o domínio português nesse continente. Esta afirmação de poderio nacional seria contestada pela Inglaterra, o que culminou no Ultimato Britânico de 1890. No final da década de oitenta, morreu o rei D. Luís, sucedendo-lhe o seu filho D. Carlos, o qual reinaria até 1908, ano em que foi assassinado num golpe anti-monárquico.
Os anos oitenta corresponderam a alterações na vida cultural portuguesa, não só pelo que de novo era criado, mas também por tudo o que deixava de existir. Muitos dos homens do Romantismo e da Regeneração morreram por volta desta década. Porém, abriam-se também as portas de uma nova época. Em 1879 regressaram para Portugal os primeiros bolseiros de Paris, os pintores Silva Porto e Marques de Oliveira, e o arquitecto José Luís Monteiro. Um ano depois, em 1880, iniciava-se em Lisboa a abertura da Avenida da Liberdade, que substituía o romântico Passeio Público, dando à cidade um aspecto mais moderno, descrito efusivamente por Gervásio Lobato em 1884: «Decididamente Lisboa está-se tornando uma grande cidade a valer. / Concorreu muito para isso, faça-se-lhe justiça plena, o sr. Rosa Araujo, com o assassinato do passeio publico do Rocio, essa vergonhosa gaiola que dava á nossa formosa cidade o aspecto acabado e reles d'uma pequena terra de provincia. A avenida da Liberdade apesar de estar ainda muito longe da sua conclusão dá já a Lisboa o aspecto amplo e grande d'uma cidade de primeira ordem». Porém, esta visão optimista era contrariada anos mais tarde por Eça de Queiroz que, mais cosmopolita, veria a nova avenida lisboeta como um «curto rompante de luxo barato – que partira para transformar a velha cidade, e estacara longo, com fôlego curto, entre montões de cascalho».
O panorama artístico português mostrava agora mais sinais de energia, pois, como afirmou Sandra Leandro, comparando «com a década anterior é inegável a existência de um maior dinamismo no domínio das artes». Novas revistas e jornais foram criados, adoptando cada vez mais a imagem, primeiro com a gravura e depois a fotografia, para ilustrar as suas páginas. Em 1878 foi fundado o magazine Ocidente, que durou até 1915. Em 1879, Rafael Bordalo Pinheiro, chegou do Brasil e logo criou um novo jornal de caricaturas, O António Maria, que apesar de uma interrupção de seis anos (1885-1891), durou até 1898. Em ambos os periódicos seria feita a crónica da Lisboa do final do século, no primeiro de forma mais isenta e no segundo de um modo mais vincadamente satírico.
Neste quadro de mudanças insere-se a esperada reforma da Academia de Belas-Artes de Lisboa. Delfim Guedes foi encarregado em 1878 de apresentar um projecto de reforma para a instituição. Sendo os professores consultados acerca deste assunto, Miguel Ângelo Lupi compôs um projecto, que publicou em 1879. Antes de falecer, o pintor romântico Manuel Maria Bordalo Pinheiro também assinou uma carta dirigida à Academia de Belas-Artes, tendo em vista a reforma do sistema de ensino, afirmando que os artistas deviam observar e compreender a Natureza. A reforma foi decretada em 1881, sendo a Academia separada da Escola de Belas-Artes. Contudo, tirando esse facto, e na opinião de José-Augusto França, esta reforma foi «mínima e sem imaginação». Só a chegada de novos professores, nomeadamente Silva Porto, permitiu alguma alteração na maneira como era administrado o ensino artístico em Lisboa.
O novo dinamismo também foi sentido no campo da museologia, pois em 1881 a reforma da Academia de Belas-Artes estipulava a existência de um museu para a instrução dos artistas e do público. Tendo sido realizada em 1882, em Lisboa, uma exposição de Arte Ornamental no Palácio Alvor-Pombal às Janelas Verdes, deliberou-se a mudança da Galeria de Belas-Artes para esse edifício, tendo-se finalmente convertido em Museu no ano seguinte. O novo museu estava sobretudo vocacionado para a arte antiga, contendo igualmente as obras de artistas da Academia de Belas-Artes de Lisboa. Este acontecimento foi um importante marco na história da museologia em Portugal, embora inserindo-se tardiamente numa tendência que já era vivida por toda a Europa, pois o Louvre fora inaugurado em Paris cerca de cem anos antes (1793) e o Prado fora fundado em Madrid em 1819.
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Texto de Margarida Elias.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

A um poeta

Fotografia de Margarida Elias, Mosteiro da Batalha (Século XV, Batalha - Leiria).
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Tu, que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno,

Acorda! é tempo! O Sol, já alto e pleno,
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares,
Um mundo novo espera só um aceno...

Escuta! é a grande voz das multidões!
São teus irmãos que se erguem! são canções...
Mas de guerra...e são vozes de rebate!

Ergue-te pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

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Antero de Quental

A imaginação

Fotografia de Margarida Elias (Castro do Zambujal - Torres Vedras, 2004).
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«Ainda estaríamos na idade das cavernas se a permanência dos habitats não cedesse por vezes lugar a atos ou obras do espírito fundadas numa das problemáticas do imaginário.»
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Francastel.

A Recepção Crítica de Manuel Mafra nas Exposições Internacionais

Fruteira de Manuel Mafra, Folha de Videira (c. 1860-1870, Museu de Cerâmica, Caldas da Rainha).
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Manuel Cipriano Gomes, dito «o Mafra», trabalhou inicialmente como operário servente na fábrica de Maria dos «Cacos», a qual tomou de trespasse em 1853, passando a empregar na marca da louça as iniciais com o seu nome. De acordo com Julieta Ferrão, a sua louça destinava-se à venda ambulante em feiras e mercados, locais onde adquiria «tudo o que era susceptível de ser reproduzido ou imitado na sua fábrica». Em 1867, participou pela primeira vez numa exposição Internacional, a de Paris, subordinada ao tema de «O Trabalho». O catálogo mencionava que ele expunha cem peças de faianças e referia que no seu estabelecimento trabalhavam dez operários. Observava-se que existiam «(…) nas Caldas, desde há muito tempo, muitas fábricas destas faianças».

Nas décadas de setenta e noventa desenvolveu-se um «pequeno surto industrial» de cerâmica nas Caldas». No ano de 1870 a situação de Manuel Cipriano Gomes começou a melhorar e passou a usar a coroa real na marca, depois do rei D. Fernando o ter designado fornecedor da Casa Real. Terá sido por influência de D. Fernando, Wenceslau Cifka e José Palha que teve acesso à cerâmica de Palissy e começou a inspirar-se nos seus modelos. Em 1873, Mafra voltou a apresentar louça das Caldas na Exposição Universal de Viena de Áustria e recebeu uma medalha de Mérito. Três anos depois, tornou a receber um prémio, desta feita na Exposição Universal de Filadélfia. O catálogo mencionava que a sua fábrica empregava 19 homens, 7 mulheres e 6 crianças. Em 1878, foi premiado na Exposição Internacional de Paris, com uma medalha de prata. Adrien Deboche, director de Belas-Artes em Limoges e membro do comité de admissão, dizia que «(…) aplaudimos os esforços de Viúva Lamego, de Mafra de Lizo [sic], de Oliveira e de Mataldo (…)». Em 1879, foi premiado, uma última vez, pela sua participação na Exposição Portuguesa do Rio de Janeiro. A Exposição de Cristais e Cerâmica mereceu a atenção de um artigo n’ O Occidente. Neste se mencionava que a «(…) Louça das Caldas destaca-se, como em todas as exposições antecedentes a que tem concorrido, pelo seu typo especial e cheio de originalidade, que lhe dá um lugar á parte na cerâmica moderna, e a faz apetecida de toda a gente dotada de bom gosto (…)».
Em 1884 iniciou a produção da fábrica de Rafael Bordalo Pinheiro e três anos depois Cipriano Gomes abandonou a direcção da fábrica, que passou a ser dirigida pelo seu filho, o que resultou num decréscimo produtivo. Havia quem dissesse que «Raphael Bordallo Pinheiro tinha por Manuel Mafra uma grande predilecção, devida principalmente ao reconhecimento dos serviços por este prestados á industria que, mais tarde, tão aperfeiçoada foi pelo grande artista». Em 1889 seria Bordalo o grande premiado, com a Legião de Honra, na Exposição de Paris.
Mafra ainda fundou uma nova fábrica, em 1897, mas sem sucesso, vindo a falecer em 1905 com 78 anos. Na imprensa local foi onde o seu desaparecimento mereceu maior saudade. O Círculo das Caldas descrevia-o como um «(…) um homem honradissimo e um trabalhador activo e muito intelligente, conseguindo elevar-se de modesto operario a um importante industrial». «Foi elle quem n’esta villa fundou a industria ceramica e que a tornou conhecida no paiz e em muitos mercados estrangeiros (…)».

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Texto de Margarida Elias.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Rafael Bordalo Pinheiro e o Arts and Crafts de William Morris

Azulejo da Fábrica de Rafael Bordalo Pinheiro, Maçaroca (Museu de Cerâmica, Caldas da Rainha).
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Rafael Bordalo Pinheiro era já famoso como ilustrador e caricaturista quando iniciou a sua actividade como ceramista na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. Esta fábrica tinha não só uma função industrial mas procurava também dar um novo alento e modernização à cerâmica das Caldas, criando ainda um espaço onde fosse administrado o ensino desta actividade. Deste modo, na medida em que houve uma «articulação da indústria com o ensino das artes e ofícios», o projecto pode remeter, como escreveu Cristina Horta, «para a ideologia do Arts and Crafts», criada por William Morris por volta de 1860. Tendo iniciado a sua actividade artística como pintor, ligado ao grupo dos Pré-rafaelitas, Morris interessou-se pela «arte utilitária», nomeadamente pela arquitectura doméstica e decoração de interiores. O sucesso das suas ideias levou a que, em pouco tempo, se fundassem outras sociedades e organizações com objectivos similares que contribuíram para a revalorização das artes decorativas, as quais são genericamente incluídas no termo Arts and Crafts Movement.
A iniciativa de Rafael Bordalo Pinheiro no campo da cerâmica começou cerca de vinte anos depois do movimento liderado por Morris. Ramalho Ortigão afirmou que foi ele quem deu a Bordalo a ideia de fundar uma fábrica de cerâmica nas Caldas da Rainha. Dizia que a ideia viera-lhe do facto da indústria tradicional das Caldas se achar em grande «decadência», apesar de ser detentora de antigos e «preciosos» modelos. Pensava que, na arte portuguesa, só havia um decorador, capaz de intervir de «um modo completo (...) n’uma industria d’arte, remanejando-a em concorrencia com as industrias similares do resto da Europa e fazendo d’ella um novo elemento de riqueza e de gloria nacional». É possível que tenha sido Ramalho quem transmitiu a Bordalo o conhecimento do movimento Arts and Crafts.
O projecto da fábrica começou a delinear-se desde 1883, sendo esta fundada um ano depois. Os estatutos davam à fábrica uma intenção de melhorar a qualidade e o desenho dos produtos, o que se coadunava com as intenções que impulsionaram William Morris. Por outro lado, o projecto da fábrica cedo se interligou com o desenvolvimento do ensino da cerâmica, o que surgiu no decurso da criação de escolas industriais no país. A função da fábrica era a de complementar o ensino teórico administrado na Escola. Os alunos eram considerados «aprendizes» e recebiam o apoio dos «alumnos mais adiantados», dentro de um espírito comunitário que tinha paralelo com o exemplo do Arts and Crafts. Essa ideologia, também se notava na forma como era vivido o trabalho, pois, tal como refere Sousa Viterbo, «o eminente artista conseguira com o seu exemplo formar uma porção de operarios habilissimos, que trabalhavam por gosto, com enthusiasmo, e que iam desenvolvendo, a par do mestre, n’um impulso natural, as suas faculdades estheticas».
O empenho de Rafael Bordalo Pinheiro na fábrica das Caldas da Rainha demonstra, de certa forma, alguma vontade de se unir ao operariado das artes industriais. Assim, ao longo de 1884, Rafael andou bastante ocupado com a fábrica, descurando as suas caricaturas no António Maria. Na altura da greve dos jornalistas em Janeiro de 1885, - insatisfeito com as críticas que lhe haviam feito os seus colegas, acusando-o de só ter aderido à greve por não ser afectado por ela - Bordalo decidiu interromper a publicação do António Maria, dizendo: «N’estes termos, não podendo ser nem político nem jornalista vou fazer-me simplesmente operario». Se é verdade que voltou pouco depois às caricaturas, iniciando a publicação dos Pontos nos ii, é certo que não deixou a fábrica das Caldas e o seu interesse em trabalhar directamente com os operários não passou despercebido a Joaquim de Vasconcelos, que o apelidou de «primeiro operario da sua fabrica».
Noutro ponto de vista, colocando a hipótese de existir alguma ligação estética entre o projecto de Morris e o de Rafael Bordalo Pinheiro, devemos notar que sobressaem sobretudo as diferenças. Morris era «um apóstolo da simplicidade». Bordalo seguiu a tradição caldense de Manuel Cipriano Gomes (O Mafra), a qual se enquadrava na tradição de Palissy. Contudo, se considerarmos que esta louça procurou rejuvenescer a arte tradicional, então também por aqui se pode fazer a ligação ao Arts and Crafts. Essa ideologia sente-se sobretudo nos padrões de azulejos, alguns deles desenhados dentro do gosto da Arte Nova. É de sublinhar que, tal como escreveu Ramalho Ortigão, os azulejos são «produtos da mais inteira perfeição artística e industrial. Nada mais barato, mais artístico no adorno dos tetos, das paredes, das fachadas dos prédios». Ora, a vontade de fabricar um produto belo, útil e barato adequava-se ao exemplo que fora dado por Morris.
Ao compararmos ambos os projectos, notamos que o de Bordalo Pinheiro partilhava ideias semelhantes às do Arts and Crafts, mas sem existir uma filiação propriamente dita. Pensamos que o que se passou foi a convergência de dois fenómenos distintos, que conduziram a essa comunhão ideológica. Primeiro, o facto de, no espaço de vinte anos que decorreram entre o caso inglês e o português, as ideias de Morris terem sido divulgadas na Europa, contribuindo para um movimento internacional de renascimento das artes decorativas, o qual acabou por desembocar no advento da Arte Nova. Depois, a forma como a ideia terá chegado a Bordalo, leva a crer que houve alguém, mais informado sobre o que se passava no resto da Europa, que formou o elo de ligação. Cremos que foi Ramalho Ortigão, conhecedor do movimento Arts and Crafts (directamente e/ou através de Joaquim de Vasconcelos), quem formou esse elo entre o movimento inglês e a fábrica das Caldas. Mas Bordalo, ao desenvolvê-la, adaptou-a à situação nacional e criou um dos primeiros empreendimentos portugueses que se dedicou às artes industriais e foi gerido por um artista, tendo como fundamento a renovação de uma forma de artesanato tradicional. Apesar das dificuldades financeiras, que comprometeram parcialmente esse projecto, ela operou uma transformação desse artesanato no sentido de uma dignificação artística que constitui um sinal da modernidade.

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Texto de Margarida Elias.


Ver:

terça-feira, 27 de maio de 2008

Cinco Artistas em Sintra

Pintura de Cristino da Silva, Cinco Artistas em Sintra (1855, Museu do Chiado, Lisboa).
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João Cristino da Silva (1829-1877) foi um dos mais destacados pintores de paisagem da sua geração. Estudou na Academia de Belas-Artes e fez parte do grupo de artistas liderado por Tomás da Anunciação que se insurgiu contra o ensino académico, defendendo um maior contacto com a Natureza. A pintura Cinco Artistas em Sintra de Cristino da Silva é, para além de uma das obras fundamentais do Romantismo português, um retrato de cinco importantes artistas da época e um documento histórico de um lugar que é hoje Património Mundial. O sítio eleito liga-se ao tempo cultural do quadro, pois é sabido que Sintra exerceu um enorme fascínio no espírito romântico» (Paula Dias Carneiro).
A composição teve como objectivo a participação na Exposição Universal de Paris de 1855, revelando-se como uma homenagem ao mestre Tomás da Anunciação, chefe de fila dos pintores de paisagem, o qual observa e desenha a paisagem em frente de si. Metrass, atrás dele, olha para o espectador, estando ambos rodeados por um grupo de gente da terra, que observa o apontamento de Anunciação. O segundo grupo, num plano secundário à direita, é apenas formado por artistas: o próprio Cristino, encostado a um rochedo e tirando apontamentos da paisagem, olhando para o espaço ocupado pelo espectador; José Rodrigues a folhear um álbum, sentado no chão, e o escultor Vítor Bastos, em pose, perto de Cristino.
A paisagem foi captada do natural e trabalhada no atelier, como era costume. Contudo, em parte, o desfecho é provavelmente imaginado, existindo cruzamento de ângulos e perspectivas, de maneira a obter um cenário ideal para os artistas, imortalizados junto de uma enorme fraga, ela própria símbolo de perenidade. Mesmo que fosse um lugar real e veramente transmitido para a tela, é hoje difícil de o encontrar visto que a paisagem mudou, por acção do homem e da própria natureza. Independentemente disso, não devemos olvidar que, como escreveu o historiador Simon Schama, as paisagens «são cultura antes de serem natureza; construções da imaginação projectadas através da madeira, da água e da pedra».
Em Cinco Artistas em Sintra a paisagem mostra uma zona árida da serra onde avulta um rochedo, situado por trás das figuras, dando-lhes «uma sensação de orgânica coesão» (Maria de Aires Silveira). Estes grandes penedos existem nalgumas zonas da serra de Sintra, como por exemplo em Santa Eufémia. Cristino representou muitas destas pedras que existiam a caminho da Pena, por vezes aparecendo como entidades próprias, autênticos gigantes de pedra, nalguns casos contrastando solenemente com minúsculas personagens, que junto deles se abrigavam ou por ali passavam. Este confronto da pequenez do homem perante a natureza é característico do Romantismo alemão e dá uma ideia de sublime a estas pinturas de Cristino.
Neste quadro de Cristino o pitoresco domina, na medida em que o penedo, de notória horizontalidade, é quase à dimensão dos homens. São as pessoas que se destacam, desta vez juntando artistas e aldeãos. O próprio cenário reforça esse contraste, pois opõe o Palácio da Pena, quase invisível, distante e envolto na bruma, à paisagem agreste que o circunda, onde dominam enormes rochedos. Faz-se assim um paralelismo entre os artistas e a Pena, sinais de civilização e os aldeãos e a terra, símbolos de ruralidade.
O valor simbólico do quadro parte do lugar, pois «para os românticos o “espírito do lugar” é justamente aquilo que pode infundir uma paisagem de um valor diferencial e simbólico» (Helena Buescu). O Palácio da Pena, recentemente edificado pelo rei D. Fernando II, estava ligado ao Romantismo. O Palácio fora construído no local onde existia um convento jerónimo abandonado, e já antes havia inspirado artistas estrangeiros, como William Burnett ou Celestine Brélaz que representaram a serra encimada pelo convento. Sintra chamava artistas e poetas para as suas paragens, sendo admirada pela sua paisagem, a qual oferecia um panorama de rara beleza. Isso se pode avaliar pelas palavras de Lord Byron: «Oh! Em que variegado labirinto de montes e vales surge agora o glorioso Éden de Sintra! (…). Trepar depois a senda tortuosa e voltar de quando em quando a cabeça à medida que subimos…Cresce a altura da fraga, e as graças crescem». É de crer que é esta a realidade que Cristino procurou retratar, colocando a Pena envolta em brumas e junto de um céu enevoado, como que fazendo a ligação entre o céu e a terra.
Outras pinturas de Cristino mostram o caminho para a Pena. Nessas pinturas é o Palácio que sobressai no seu esplendor, com a torre em destaque. O primeiro plano é preenchido por penedos, mostrando uma paisagem agreste, aberta por um caminho que permite ultrapassar o obstáculo da natureza de forma a chegar ao palácio acastelado, sublinhando-se assim o seu aspecto de paragem civilizada no meio do deserto. É tipicamente romântica esta justaposição de um «monumento histórico transitório» com a «natureza eternamente duradoura» (Norbert Wolf).
A paisagem figurada por Cristino nos seus retratos de Sintra viria a ser transformada. O local era já admirado, mas não existia o arvoredo denso que veio a receber com a plantação do Parque da Pena. Tal como escreveu, em 1886, Ramalho Ortigão, foi D. Fernando que rodeou o castelo da Pena de «jardins admiráveis», sendo anteriormente um «terreno inculto e baldio». Pela acção do homem o local iria ser transformado e o Romantismo que vinha do contraste entre o homem e o nada, o Palácio e a pedra, foi substituído pelo Romantismo do próprio bosque, que fortalece o carácter devaneador do local. A dureza das pedras impressa nas pinturas e desenhos de Cristino foi dissimulada, mas nem por isso o Palácio surge menos inacessível, envolto nas brumas como se fora o castelo do Graal. Richard Strauss diria acerca do Parque e do Palácio: «Este é o verdadeiro jardim de Klingsor – e lá no alto está o castelo do Santo Graal».
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Texto de Margarida Elias.

sábado, 24 de maio de 2008

Pobres das flores dos canteiros

Fotografia de Margarida Elias, Ameal.
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Pobres das flores dos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam...
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Ceci est la Couleur de mes rêves

Miró, Photo: Ceci est la Couleur de mes rêves (1925, The Metropolitan Museum of Art, New York).

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They who dream by day are cognizant of many things which escape those who dream only by night.
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Edgar A. Poe.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

O Retrato Oficial Romano no tempo da Dinastia Júlio-Cláudia


O retrato é um dos géneros artísticos mais antigos, que remonta a épocas recuadas, começando a surgir de forma coerente a partir do Egipto faraónico. Na origem do retrato romano existem três aspectos essenciais: a tradição etrusca, o retrato fisionómico grego do período helenístico e o costume romano das imagines maiorum ou efígies dos antepassados. Em Roma os nobres patrícios tinham o monopólio do poder político, social e económico, formando um grupo de carácter conservador. Era costume entre os representantes masculinos possuirem retratos dos antecessores, as imagines maiorum, que eram guardados no atrium das casas. Desta forma realçava-se o estatuto da família, que assim demonstrava a sua antiguidade e valorizava os membros mais importantes. O retrato servia também como uma maneira de preservar as fisionomias características da gens. No caso da família Júlio-Cláudia, importa notar que esta se julgava ser descendente de Vénus. Na Eneida, quando Eneias visita seu pai Anquises no Inferno, este mostra-lhe as almas e os destinos daqueles que se preparam para nascer, terminando por afirmar: «Aqui, volta os teus olhos, olha esta nação, os Romanos. Aqui César e toda a descendência de Iulius, tal como ela surgirá sob a grande abóbada do céu. Este homem, é aquele que tu ouves frequentemente dizer que te é prometido, Augusto César, filho de um deus».

Para além do culto dos antepassados, o retrato romano tem ligações ao retrato grego. Foi na Grécia que, durante os séculos V e IV a.C., se criou pela primeira vez o retrato tal como o entendemos hoje. O retrato realista surgiu na mesma altura em que se desenvolveu a valorização da ideia de indivíduo. O retrato fisionómico é fruto de sociedades laicas, como a sociedade grega ateniense que então surgia. Um ambiente áulico é mais propício ao desenvolvimento do retrato tipológico, o que explica que nos seus aspectos comemorativos o retrato tendesse preferencialmente para a idealização da personagem. O retrato grego apresentava a figura inteira, o que correspondia a uma concepção do homem como um ser total e à ideia grega de belo, que se ligava à noção de unidade e integridade do corpo. Com Alexandre Magno surgiu um novo tipo de retrato de função política, para glorificar o indivíduo. Foi com este imperador que se inauguraram as séries de retratos de vocação dinástica, celebrando o conquistador e legitimando o seu poder. Também a estátua equestre surgiu na época helenística e teve como pressuposto Alexandre a Cavalo de Lísipo. Foi no século IV a.C. que na Etrúria surgiu o retrato fisionómico. Antes existia somente um retrato tipológico, mas que já tinha características que se manteriam no retrato romano, nomeadamente na valorização da cabeça, enquanto parte do corpo que melhor caracteriza o ser humano.
O culto imperial terá nascido da necessidade que Augusto teve de justificar, perante o Senado e perante o povo, a sua subida ao trono pela força das armas. A este culto está ligado o hábito de que o primeiro acto do conquistador sobre o novo domínio fosse instalar um templo e a sua efígie de modo a que o seu culto fosse celebrado. O retrato imperial desenvolveu uma iconografia que se tornou própria da dinastia Julio-Cláudia. Tendeu a conciliar alguma idealização (que corresponderia talvez também à divinização das personalidades em causa, uma vez que contribuía para uma concepção da efígie dentro de uma eterna juventude e beleza) com a os constituintes da identidade pessoal. Os bustos foram aumentando de tamanho, no sentido de ultrapassarem a linha do pescoço e descerem até ao peito. No entanto, no retrato imperial predominava a estátua de corpo inteiro. Surgiram as «estátuas-pedestal», que correspondiam a corpos aos quais eram aplicadas cabeças-retrato, devidamente elaboradas de modo a que encaixassem. Este sistema permitia alterar os retratos com maior facilidade, nomeadamente quando existiam alterações de governo e em casos de damnatio memoriae. Em termos de composição, os grupos Júlio-Cláudios ocupavam uma posição limiar entre o humano e o sobrenatural. Embora as estátuas fossem geralmente de tamanho natural ou pouco maiores, com o tempo começaram a surgir algumas de tamanho colossal, que transmitiam uma noção de poder supremo. Progressivamente as figuras imperiais começaram a ser identificadas com os deuses. Tibério e Cláudio foram representados figurando Júpiter.
Segundo Suetónio, Calígula chegou a mandar colocar o seu retrato sobre o corpo de deuses e deusas. Este escreveu que o Imperador considerava ter superado a grandeza dos príncipes e dos reis, passando a conferir-se majestade divina: «(...) Depois de ordenar que trouxessem da Grécia as estátuas das divindades mais belas e mais veneradas, entre as quais a de Júpiter Olímpico [obra de Fídias], no intuito de lhes substituir as cabeças pela sua própria, mandou ampliar até ao Forum uma álea do palácio e, transformando em vestíbulo o templo de Castor e Polux, ali se postava muitas vezes, no meio dos irmãos os deuses, oferecendo-se assim à admiração dos visitantes e muitos o saudaram mesmo com o nome de Júpiter Latino. Instituiu também um templo especialmente consagrado à sua própria divindade, (...). Nesse templo erguia-se a sua própria estátua de oiro, feita com o modelo à vista, todos os dias revestida com um trajo igual ao seu (...)». O mesmo historiador conta que Nero mandou colocar coroas sagradas nos seus aposentos e erigiu estátuas suas vestidas como tocador de Cítara, mandando cunhar uma moeda com essa efígie.
A dinastia Júlio-Cláudia é a que tem uma maior quantidade de retratos encontrados tanto em Portugal como na Península Ibérica, correspondendo a um momento de apogeu do domínio romano, no qual houve maior paz e riqueza. No território português têm sido encontrados retratos desta dinastia, aparecendo também inscrições que indicam a existência de estátuas hoje desaparecidos. Como referiu Vasco de Sousa, ao dedicar-se a este tema, os «(...) retratos romanos imperiais encontrados em Portugal são, na sua maioria, cabeças de encaixe elaboradas para serem inseridas numa estátua». Pertenceriam todas as cabeças a esculturas monumentais, talvez estátuas de corpo inteiro ou «estátuas-pedestal».

Festa do Silêncio


Fotografia de Margarida Elias, Convento de Cristo (Tomar).

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Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.

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António Ramos Rosa.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

António Carneiro - Retrato de Teixeira de Pascoaes


Desenho de António Carneiro, Teixeira de Pascoaes (1923, Museu Municipal Amadeu de Souza-Cardoso, Amarante).
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António Carneiro conhecia desde cedo o retratado, que era como ele natural de Amarante. Encontraram-se pela primeira vez numa viagem do pintor a essa localidade, mas foi a partir da fundação de A Águia que as suas relações pessoais se estreitaram. Carneiro passava por vezes temporadas de Verão, em Setembro, no solar do escritor, tendo sido nesse contexto que foi feito este retrato. Pascoaes escreveu, em testemunho da ligação que existia entre eles: «(...) Éramos do mesmo povo, da mesma terra e da mesma melancolia panteísta (...)».
O retrato de Teixeira de Pascoaes, feito a água-tinta, apresenta uma figura de linhas fluídas e ondulantes, criada com traços finos que esboçam o rosto e o corpo. Esta figura surge em primeiro plano sobre um fundo neutro. Os contornos são indefinidos e por vezes multiplicam-se, produzindo o efeito de um apontamento rápido sobre a realidade, embora haja uma definição do rosto que dá uma leitura mais demorada e informada sobre essa zona do desenho, que é o retrato propriamente dito. Os traços finos do corpo surgem em diferentes direcções, sendo tendencialmente verticais, construindo uma estrutura tensa, expressiva e nervosa. O fundo não tem materialidade, é abstracto, e a forma, sobretudo do busto para baixo, confunde-se com ele, como se ela dele emergisse e nele criasse raízes. É a cor que vai contribuir para ajudar o olhar a ler e completar as formas. Os tons terra ajudam a criar uma atmosfera calma e agradável. A luz vem da esquerda, de frente para a figura. É uma luz colorida e crepuscular, que reforça uma sensação de intimismo. Ela modela a personagem, iluminando a sua face, mas deixando sombras que vão aumentando para o lado direito do quadro.
A zona mais elaborada está no topo central e corresponde à cabeça. Ela parece ascender, o que é reforçado pelos traços verticais e pelas angulosidades em forma de chamas do rosto. Além disso olhar tende a seguir o percurso dos ritmos (espaçamentos) mais lentos (em baixo) para os mais rápidos (em cima). O topo da figura forma uma curva que se debruça sobre a metade inferior. Há uma certa efervescência nos traçados e nas pinceladas que contrasta com a calma e concentração da figura, o que se traduz numa tensão contida. É como se a sua ebulição fosse apenas interior. «(...) O expressionismo de Carneiro, como metamorfose de uma via simbolista, não se vira para fora, para uma percepção de violência imediata, mas para dentro, íntimo e nostálgico, numa violência lenta, porque corresponde a um tempo que se perde e não a um que se ganha (...)» (Fernando Dias).
Questionando esta obra enquanto retrato a sensação que se tem é que ela exprime a verdade, mas vai além do naturalismo. Capta a personagem para além da sua aparência física, numa abordagem espontânea, de quem encontra alguém numa actividade quotidiana, não numa pose. A intenção vai para além da representação da realidade, procurando penetrar o ser. Como escreveu o retratado «(...) Reparae n'um perfil humano e vereis, sobre ele, as mãos febris d'uma alma a trabalhá-lo, duma alma que pretende rasgar a névoa e aparecer, cá fora, á luz do sol». A indefinição das formas, as suas aberturas, apresentam uma vontade de captar aquilo que transcende a pessoa enquanto ser carnal, deixando em aberto a compreensão de um ser que não se pode apresentar certo e definido porque é mudança, combinando-se com a realidade que o circunda. Tal como dizia Pascoaes: «Cada vez confundo mais os homens com as cousas. Eles vão-se apagando na indecisão brumosa da paisagem, conforme o nosso olhar se alonga através do seu espaço interior... Ha um ponto central em que um homem já se não distingue d'uma pedra... ou d'uma nuvem».
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Texto de Margarida Elias.

Carlos Reis: Director do Museu Nacional de Arte Contemporânea (1911 - 1914)


Pintura de Columbano Bordalo Pinheiro, Retrato de Carlos Reis (1897).
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Implantada a República, em 29 de Maio de 1911 era publicado no Diário do Governo um Decreto reorganizando os serviços nacionais de Belas-Artes, dos Museus e da Arqueologia, assinado por António José de Almeida, ministro do Interior. No relatório que servia de prefácio ao decreto de reforma, afirmava-se a importância das qualidades instrutivas da arte, às quais se dedicava a nova legislação. O país passava a ficar dividido em três circunscrições, em cujas sedes - Lisboa, Coimbra e Porto - estava um Conselho de Arte e Arqueologia, ao qual competia organizar exposições onde se fizessem compras para os museus; proceder à aquisição de obras de arte e escolher entre as doadas ou depositadas aquelas que deviam ser expostas. Nos Museus Nacionais de Arte Antiga e Contemporânea eram distribuídas e expostas as obras de arte nacionais ou estrangeiras que fossem adquiridas pelos Conselhos; as obras de arte que constituíam título de candidatura dos vogais efectivos e correspondentes; os trabalhos executados pelos pensionistas, quando considerados dignos; as obras de arte consideradas propriedade do Estado e as obras depositadas a cargo do Conselho. Ficava explícito que o rendimento do legado Valmor para a aquisição de obras de arte era exclusivamente destinado a estes museus.
A 17 de Junho de 1911 Carlos Reis, professor da Escola de Belas-Artes e ex-director do Museu Nacional, era nomeado para o cargo de director conservador do Museu de Arte Contemporânea. Este Museu era criado a 19 de Julho, ficando estabelecido provisoriamente (e em definitivo) no Convento de São Francisco, no Chiado. A 28 de Junho de 1914 tinha uma inauguração provisória. Como era noticiado em O Mundo a «comissão executiva do Museu de Arte Contemporânea resolveu só inaugurar por agora a secção de pintura, em virtude de não estarem concluídas as obras da galeria de escultura». Também informava que a «inauguração verdadeiramente oficial do museu far-se-ha depois da conclusão de todas as obras (...)».
O seu aspecto seria ainda o de um museu do século XIX, com uma arquitectura clássica e telas sobrepostas em filas, aproveitando o espaço tanto quanto possível e misturando escolas e épocas. Um jornalista do Século diria que «parece-nos que as paredes estão cheias demais, com prejuizo para as melhores obras ali expostas, que ficam abafadas por outras, que, á falta de espaço, bem poderiam ser retiradas e fazerem companhia, no arquivo, a todas as outras que lá estão (...)». Como se pode conferir no inventário, a maior parte das obras entradas durante a direcção de Carlos Reis pertenciam ao Romantismo e também ao primeiro Naturalismo, existindo algumas peças do Modernismo (três pinturas). Entre os estrangeiros não se contavam nomes muito destacados, sobretudo artistas ligados aos meios académicos, na sua maioria franceses e espanhóis. Eram artistas como J. P. Laurens, Cormon, Albert Besnard e Bonnat, por exemplo. Grande parte da colecção era de arte portuguesa, integrando algumas obras de elevado valor histórico e artístico. A maioria dos artistas representados eram ou tinham sido professores da Escola de Belas-Artes e membros da Academia. Entre as peças que foram expostas, destacavam-se A Passagem do Gado de Cristino da Silva, Margens do Oise de Silva Porto, A Luva Cinzenta de Columbano e Contemplação de António Carneiro. Em 1914 foi adquirido o quadro Interior de Eduardo Viana, que foi uma das primeiras entradas de pintores do Modernismo.
O catálogo preparado em 1913 não chegou a ser divulgado. Era um resumo do inventário e mantinha os seus números. O volume era bastante pequeno (quatro páginas), sem introdução ou imagens, apenas distribuindo as peças por salas e tipos. Existia uma sala A (com maior número de obras) com desenhos e aguarelas, pinturas a óleo e esculturas. Na sala B estavam os artistas estrangeiros e na sala C e D pinturas a óleo de artistas portugueses. Em todas as salas predominava a pintura de paisagem, seguida de temas contemporâneos e pintura de género, bem como da pintura de História. Eram muito poucos os retratos e as naturezas-mortas. Carlos Reis parecia ter dado preferência aos domínios que ele próprio privilegiava enquanto pintor. No entanto era a época Romântica a mais representada (com destaque para Tomás da Anunciação, Cristino da Silva e Miguel Angelo Lúpi), sendo ainda dado relevo à obra de Silva Porto.

Paradoxalmente, no momento em que o trabalho de organização já estava quase terminado, Carlos Reis foi destituído do seu cargo. Precisamente no dia da inauguração do Museu, o ministro das finanças Afonso Costa fazia propostas de poupança entre as quais estava a extinção do vencimento para o cargo de director do Museu. Em finais de Julho de 1914 Carlos Reis recebeu o apoio do jornal O Dia que diria que fora por vingança dos «democráticos» que o congresso cortara o subsídio orçamental de dotação do Museu de Arte Contemporânea ao seu director, pela razão de «Carlos Reis, embora estranho à política» ter «a pecha de haver sido amigo dedicado e fiel do sr. D. Carlos (...)». A 14 de Agosto o Conselho de Arte e Arqueologia propunha Columbano Bordalo Pinheiro para o mesmo cargo e a nomeação ministerial de 17 de Dezembro confirmou-o. Carlos Reis relataria a história com alguma ironia e amargura: «Como Director do Museu d'Arte Contemporanea taes provas dei do meu desastrado criterio e da minha ignorancia em materia d'arte, que ao cabo de três anos, o Congresso votava a extinção do logar de Director, que, como era de presumir, se restabeleceu, aliás com toda a razão, na pessôa do meu imediato sucessor».
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Texto de Margarida Elias.
Cf. António Manuel Gonçalves, Carlos Reis, Director de Nuseus Nacionais, Torres Novas, 1963.

terça-feira, 20 de maio de 2008

A Academia de Belas-Artes e os primeiros passos do Museu de Belas-Artes


O termo museu vem do grego museion, nome que era dado a um templo dedicado às musas, construído sobre a colina do Helicon de Atenas. Contudo, os museus actuais tiveram a sua origem nas grandes colecções reais e principescas que, ao longo da época moderna, se abriram progressivamente aos artistas e ao público. Foi durante o Iluminismo que apareceram os primeiros museus de arte, que se inseriam culturalmente «no grande projecto filosófico e político das Luzes: vontade dominante de "democratizar" o saber, de o tornar acessível a todos pela substituição de objectos reais às descrições e às imagens das recolhas de antiguidades, vontade, menos geral e menos afirmada, de democratizar a experiência estética» (Françoise Choay). Por outro lado, foi a par do desenvolvimento da ideia de património, que os primeiros museus se começaram a desenvolver, já que passou a existir uma preocupação não só com a protecção dos objectos que eram testemunho do passado, como também uma vontade de os catalogar e ordenar de forma a dar-lhes uma sequência e organização coerentes.
Durante o século XIX e início do XX os museus multiplicaram-se pelo mundo ocidental, servindo na afirmação de identidades nacionais. Em Portugal, foi a partir da segunda metade do século XIX, que a actividade museológica teve um impulso inovador com a criação de novos museus e formação de novas colecções. Na sequência do estabelecimento do Liberalismo em Portugal, foi criada em 1836 a Academia das Belas-Artes de Lisboa (Academia Real a partir de 1862). Essa instituição ocupou o espaço do Convento de S. Francisco e, para além de ter acolhido o ensino de Belas-Artes, recebeu ainda bens que o Estado incorporou por via da lei de extinção das ordens religiosas (1833), correspondendo aos conventos da zona sul do país. Por esta via, a guarda do espólio artístico do Estado ficou a cargo da Academia e a ele se foram juntando outras obras, incluindo as dos próprios académicos e doações. A colecção foi ainda alargada por outras vias legais, para além de eventuais doações e aquisições - com ajuda de dotações para o efeito, como a de D. Fernando II. Dessa colecção que se juntou com o tempo, foram escolhidas algumas obras, que formaram nos corredores e salas de S. Francisco uma galeria de arte que cedo se pensou vir a abrir ao público.
O marquês de Sousa-Holstein, Vice-Inspector abriu em 1868 (e até 1882) na Academia, uma Galeria Nacional de Pintura, da qual se fez publicar um catálogo. As obras expostas haviam sido seleccionadas por uma comissão de professores, que cuidaram das molduras e colocação das obras. A Galeria ficou instalada inicialmente em três salas, às quais foram depois acrescentadas mais duas - quatro delas ficariam depois para o Museu Nacional de Arte Contemporânea.

Por decreto de 19 de Novembro de 1875 foi nomeada uma comissão para propor ao Governo uma reforma do ensino das Belas-Artes e o plano de um museu. Em 1876 procurou-se um novo espaço e em Maio de 1879, Delfim Guedes, novo inspector da Academia, alugou por trinta anos um palácio às Janelas Verdes que fora de um Távora, Conde de Alvor, que havia passado depois para o marquês de Pombal. Em 1881 fez-se uma «Reforma das academias de bellas artes de Lisboa e Porto», sendo dividida a academia e a escola de Belas-Artes. No decreto era afirmado que um dos deveres da Academia era «Solicitar a reunião em um museu dos objectos de arte pertencentes ao estado», «Contribuir para a formação de um museu de bellas artes» e «Inspeccionar o mesmo museu, procurando por todos os meios ao seu alcance, enriquecel-o e desenvolvel-o». O Capítulo X era dedicado ao futuro museu: «Os quadros, esculpturas e mais objectos de arte, que actualmente existem na academia de bellas artes, formarão a base do museu que se crear para instrucção dos artistas e do publico».
Em finais de 1881 abriu no Palácio das Janelas-Verdes uma exposição de arte ornamental portuguesa e espanhola, organizada por uma comissão presidida por Delfim Guedes. Esse certame foi bastante procurado pelo público, o que mereceu ao Inspector da Academia o título de conde de Almedina (1882). Posteriormente, Delfim Guedes conseguiu instalar o museu nesse palácio, transferindo obras da Academia e adquirindo outras, pelo que o novo Museu de Belas-Artes era aberto ao público a 12 de Junho de 1884. O cargo de director era acumulado ao de director da Academia, sendo nomeado para conservador Manuel de Macedo, que foi o responsável técnico até 1915. Sucederam como directores do Museu António Tomás da Fonseca e António José Nunes Júnior. Apesar de todos os esforços, em finais de oitocentos, Ramalho Ortigão ainda reclamava um verdadeiro museu de pintura, dizendo que em Portugal não há «nem um Museu de pintura, coordenado, catalogado e etiquetado de maneira que comunique ao público, assim como em tôdas as outras capitais da Europa, a lição que um museu contém, há pelo contrário escaparates de aparatosos armazéns, que são para quem anda pelas ruas o contagioso exemplo da mais corrompida perversão, do mais provocante e pomposo relismo a que pode chegar o desvairamento do gôsto».
Em 14 de Novembro de 1901 era reorganizada a Academia, Museu e Escola de Belas-Artes, através de um decreto assinado por Hintze Ribeiro. Nele se afirmava o «papel fundamental educativo que a arte desempenha na orientação e na vida moral de um povo». No decreto explicava-se que seriam expostas no Museu as obras de arte antigas e as «Obras de Arte, modernas, nacionaes ou estrangeiras, de reconhecido valor». Mais concretamente dizia-se que estava em vista a «organização de uma sub-secção especialmente consagrada á exposição de trabalhos dos artistas portugueses contemporaneos».

Em 1905 abriu uma vaga na direcção do Museu de Belas-Artes e foi reunido o plenário da Academia presidido pelo Inspector, Visconde de Atouguia, de modo a ser eleito o novo director a ser proposto ao Governo. Nessa eleição, ganhou o professor de escultura, Simões de Almeida Júnior, ficando Carlos Reis em segundo lugar. No entanto, um ofício do Ministro do Reino alterou a escolha e comunicava que seriam divididas as direcções do Museu e da Escola, ficando Simões de Almeida como director da última e Carlos Reis como director do Museu de Belas-Artes. Com a ajuda de José de Queirós, erudito ceramólogo e coleccionador, em Maio de 1911 era aberta a sala de Cerâmica e Vidros do Palácio das Janelas Verdes, que granjeou à direcção do Museu elogios dos congressistas participantes no Congresso de Turismo que funcionava na altura. Uma das preocupações iniciais da Comissão Executiva relativas ao Museu foi a realização de um catálogo completo, que apesar dos esforços de inventariação demorou a surgir, tendo sido publicadas duas edições do «Catálogo de Pinturas» (1883 e 1889). Em 1906 era posto à venda o Catálogo dos Desenhos do Museu Nacional de Belas-Artes e, em Outubro de 1910, Carlos Reis remeteu ao Inspector da Academia o texto do Catálogo da Secção de Pintura do Museu das Janelas Verdes. Davam-se assim os primeiros passos na museologia e salvaguarda do património em Portugal.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

O pensamento de Paul Klee

Pintura de Paul Klee, Revolving House (1921, Museu Thyssen-Bornemisza, Madrid).
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O pensamento de Klee inscreve-se na filosofia da Europa central, onde proliferam teorias de pensamento estético em que há uma analogia entre a criação artística e a natureza. Klee foi também formado num contexto do Simbolismo alemão e suíço, interessado no enigma do destino humano. Para ele, a expressão do "eu" unia-se ao conceber a obra de arte, com a expressão da totalidade da natureza.
Klee considerava que a pintura era uma arte temporal, tal como a música. Mas para ele tempo não não se tratava de uma representação de movimento. O tempo é o da génese, a obra é em si movimento e está inscrita na duração, no crescimento, na mutação e na metamorfose. Tempo é o que se leva a conceber a obra e a observá-la. Os seus «quadros-poema» introduzem explicitamente o carácter temporal no processo de observar, mas mesmo outros trabalhos foram construídos de modo a que o olhar do observador levasse tempo a percorrê-los.
O diálogo do artista com a natureza era para Klee condição sine qua non. Mas esse diálogo não era necesariamente uma impressão do exterior, mas antes uma expressão interiorizada do mundo. Nos «Estudos da natureza» Klee traçou um diagrama que integrava o artista, o objecto, a terra e o mundo. O artista sintetizava a visão interior e exterior, numa relação total entre o "eu" e a natureza. Na conferência de Iena, Klee comparou o artista com uma árvore: assim como as raízes transmitem seiva ao tronco, a partir da qual se desenvolve a copa da árvore, o artista parte da natureza e molda a sua experiência na obra. Ninguém espera que a copa de uma árvore seja idêntica às raízes, assim também uma obra não deverá ser meramente uma representação da aparência do objecto. As realidades da arte «não reproduzem o visível com mais ou menos temperamento, mas tornam visível um a visão secreta». A arte é uma imagem da criação, assim como o mundo terrestre é um símbolo dos cosmos.
A noção de interioridade da representação torna-se ainda mais explícita quando Klee fala do auto-retrato. Segundo ele deve-se ter em mente «que não estou aqui para reflectir a superfície (uma fotografia pode fazer isso), mas deve-se olhar para dentro. Eu reflicto o mundo do coração. Escrevo as palavras na testa e em torno dos cantos da boca. As minhas caras humanas são mais verdadeiras do que as reais». Para ele o acto de ver é mais do que a percepção óptica imediata, inclui também associações e sentimentos, coisas e acontecimentos há muito armazenados na memória.
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Texto de Margarida Elias.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Paul Klee e o Surrealismo


Paul Klee, Mural from the Temple of Longing (1922, MOMA, New York).
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Relacionar Paul Klee com o Surrealismo implica relacionar um artista com um percurso muito individualizado e que só é facilmente ligado aos grupos a que aderiu explicitamente. O grupo liderado por André Breton implicava, para além de uma nova postura na criação artística, a busca de um estado de espírito que deveria ter consequências na própria vida. Klee não demonstrou uma grande preocupação em se aproximar ou afastar do Surrealismo. Contudo, a sua obra gráfica pode ser vista como uma antecipação dos objectivos da estética surrealista, ou seja, de um automatismo psíquico que transpunha para um suporte a vida interior sem qualquer mediação convencional ou racional.
Foi através de Max Ernst que o grupo surrealista tomou contacto com a obra de Klee, no início dos anos 20. Aragon foi um dos primeiros a interessar-se pela sua obra e a mencionar o seu nome em Paris. Em Abril de 1925, em La Révolution Surréaliste, por iniciativa de Artaud, foram reproduzidos quatro trabalhos do artista. No ano de 1936, o pintor foi representado na exposição do Surrealismo em Londres, numa ocasião em que Breton pronunciou um discurso sobre os limites e fronteiras do Surrealismo. Em 1941, na «Génese et perspective artistique du Surréalisme» Breton voltou a mencionar Klee. A passagem em que o faz é muito breve, apenas referindo o que considerava ser um «automatismo (parcial)» como um contributo para o posterior desenvolvimento de uma pintura surrealista.
O número dos Cahiers d'Art respeitante a 1945-1946 fez uma uma homenagem a Klee, com textos e poemas de autores ligados ao Surrealismo. Crevel surgiu representado com um artigo de 1928, onde escreveu a famosa frase que diz que perante o trabalho de Klee «travei conhecimento com animais de alma, aves de inteligência, peixes de coração, plantas de sonho». Entre os dissidentes do Segundo Manifesto surgia Soupault, com um texto de 1929, onde afirmava que a pintura de Klee «Não é comparável ao sonho. Quero dizer com isso que não me evado noutro universo, mas que o visito, que o percorro com os olhos de todos os dias. (...) Nós somos, graças a ele, cegos que vêem. Klee é um libertador». Bataille dizia: «Senti-me sempre de acordo com um lado discreto, insistente, obcecado verdadeiramente silencioso de todas as suas composições». No ano de 1946, na revista Fontaine, Masson assinou um «Éloge à Paul Klee», onde comentava que o trabalho do pintor alemão «continua debaixo do selo do segredo. Assim fica no seu lugar próprio, na ordem cuidadosamente ocultada dos valores espirituais».
No nível plástico a obra de Klee tem semelhanças com a de Miró. Ambos se interessavam pela música, nomeadamente por Bach, e ambos praticaram uma «picto-poesia. Tanto um como o outro são frequentemente associados à pureza primitiva e das crianças. Os dois partilharam uma noção de sublime onde, por detrás de uma aparente ironia ou inocência, se esconde um lado mais sombrio. O tema do olhar do real é uma obsessão dos surrealistas, e tanto Miró como Max Ernst citavam frequentemente a frase de Klee: «E agora os objectos olham-me».
Era também comum à estética surrealista e à de Paul Klee a valorização dos sonhos e do inconsciente. Ele também procurava o maravilhoso próprio do imaginário, mas não recorria a processos de excitação alucinatória. Chegava às imagens do inconsciente por um processo consciente, já que para ele esses eram dois campos unidos da mente humana. Mas por certo que Klee teria concordado com a frase de Breton, ao afirmar que «o modelo será interior, ou não será».
Noëmi Blumenkranz, num artigo sobre Klee do Dictionnaire Géneral du Surréalisme et de ses environs, notou que o ponto supremo de Breton, no qual todas as antinomias deixam de ser compreendidas contraditoriamente, aparenta-se com o ponto cinzento de Paul Klee, que seria o primeiro ponto da criação. O ponto cinzento era o ponto fatídico entre o que vive e o que morre: «Estabelecer um ponto no caos é reconhecê-lo necessariamente cinzento devido à sua concentração principal e lhe conferir o carácter de um centro original onde a ordem do universo vai romper e irradiar em todas as dimensões. Afectar um ponto de uma virtude central, é originar a cosmogénese. A este acontecimento corresponde a ideia do todo. Começo (...) ou, melhor: o conceito de ovo».


O pintor apelava para uma espécie de limbo onde podia dizer que o seu «ardor é mais da ordem dos mortos e dos seres não nascidos. (...) Ocupo um ponto recuado, original da criação, a partir do qual pressuponho as formas próprias do homem, do animal, do vegetal, do mineral e dos elementos, no conjunto das forças cíclicas / (...) As possibilidades são infinitas e a fé nelas vive, em mim, criadora. / (...) A arte é um símbolo da Criação. Deus não se preocupará com os estados fortuitamente actuais». Esse local aparentava-se bastante com o estado de clarão que Breton pretendia alcançar através do acesso ao inconsciente. Klee esteve próximo do Surrealismo, nomeadamente nas obras mais oníricas e absurdas. Contudo afastava-se, por uma maior espiritualidade, pela ironia sem espírito de manifesto, pela maior preocupação com a pintura, e também por um gosto pela ordem e clareza de ideias. Embora se representasse a meditar de olhos fechados, tinha os olhos abertos para a natureza que tanto apreciava.
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Texto de Margarida Elias.

Aporias (dificuldades) Inerentes à Finalidade da Arte


Escultura de Praxíteles, Hermes e Dionísio (Séc. IV a.C., Museu Arqueológico de Olímpia).
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Falar sobre a finalidade da arte é, como referia René Huyghe, uma questão difícil, que «já é audacioso colocar, quanto mais satisfazer». É uma aporia da estética, uma expressão de uma incerteza, o embaraço daquele que não vê nenhum caminho diante dele e se pergunta por onde passar. Ao procurarmos dar uma resposta deparamos com uma primeira dificuldade: qual o conceito de arte que está em causa. Em termos gerais a arte pressupõe o emprego de certas qualidades de pensamento ou de destreza manual na realização de uma obra. A arte pode ser entendida como uma técnica (tékné), mas em termos de estética as definições de arte que mais interessam são a das artes liberais (sobretudo no que diz respeito á retórica) e a das belas-artes. A nossa resposta irá limitar-se às duas últimas categorias, o que nos permite dar já uma finalidade para a arte: as suas qualidades estéticas.
A arte é uma transfiguração da existência, uma figuração que vai além da realidade perceptiva, é aquilo que fica como testemunho de um encontro entre o imaginário e as condições reais do mundo. É uma experiência de reestruturação do mundo, transforma o modo como olhamos o real. Seja qual for a sua utilidade extrínseca a arte surge como absolutamente essencial, sem ter havido uma única sociedade humana que tenha podido passar sem ela e que não lhe tenha encontrado uma forma à sua medida. A obra de arte é um reflexo do homem e é humana, porque foi inventada pelo homem e porque existe pela marca do homem.
A finalidade da arte poderá ser a manifestação de um ser (o artista ou uma comunidade), a exploração do mundo exterior, o embrenhar-se no encontro do Outro, do fantástico e do sobrenatural, poderá ser de elo entre o ser de cada um (finito) e o ser infinito (Infinito, Deus). A ideia que a beleza de uma coisa pode ter a adaptação da sua forma ao seu fim é antiga, e a finalidade da arte tendeu a ser sempre outra que não a arte. Deste modo, a arte teve funções religiosas, políticas, económicas, sociais. Mesmo hoje se pode ter em consideração que o útil e o belo podem, não somente ser compatíveis, mas sustentar-se, se a beleza de uma forma é devida à perfeita adaptação desta forma ao uso para o qual o objecto foi feito. O fenómeno da arte pela arte é recente, contemporâneo da criação do museu de belas-artes, visto que quando as obras de arte estão num museu o seu único propósito passa a ser estético.
O conceito da finalidade da arte teve evoluções, mas iremos apresentar aqui apenas três dos momentos: da Escolástica, de Kant e de Hegel. Na estética medieval havia uma concepção intelectualista da arte, já que o belo punha em relação a forma com o puro conhecimento, dentro de uma prioridade conferida à inteligência na captação do belo. A arte tinha uma finalidade sobretudo didáctica. Para São Tomás de Aquino a finalidade da arte estaria na perfeição do objecto criado de acordo com o fim para que foi criado. A arte é entendida do ponto de vista da verdade, procura-se o que agrada à inteligência. Procura-se o Ser uno, verdadeiro e bom: unidade intrínseca, que permite conhecer o objecto e identificá-lo. Deus é o Ser Absoluto e a Beleza Absoluta. Há uma finalidade metafísica do belo que nos leva a Deus.
Foi no período moderno a arte começou a ser encarada como merecedora de uma atenção estética, o que se liga á emergência da subjectividade. A preparação deu-se nos sécs. XV e XVI com a instituição da perspectiva pictural, a criação de um «espaço plástico que de pleno direito é polarizado pelo ponto ideal que é o olhar do espectador». Foi no século XVIII que surgiu a estética, uma teoria da modalidade da subjectividade que é a sensibilidade. Com Kant, desenvolveu-se a ideia da finalidade em estética, criando a fórmula da finalidade sem fim. Segundo a sua teoria, a arte estava subordinada a fins éticos, onde o desinteresse estético servia de preparação, já que era uma crítica implícita à prática social onde tudo se fazia por interesse.
Na sua estética Kant colocou-se sobretudo no ponto de vista do contemplador - até porque para ele a forma primordial da beleza está na natureza. Para Kant a beleza tem uma finalidade subjectiva desinteressada, universalmente comunicável e que proporciona um prazer necessário. A finalidade da arte para a estética de Kant está relacionada com a finalidade do belo, e sobretudo com a atitude estética.
Kant prefigurou uma atitude estética que se destaca pelo seu purismo. «A beleza livre, sobre a qual se debruça o juízo estético puro, está liberta de qualquer subordinação a um fim, de todo apelo à volúpia, de todo o significado definível, de toda a fórmula de composição». O belo é o que está conforme a um fim (zwecknässigkeit) sem fim. A finalidade do belo não está no objecto, mas sim no sujeito que o observa. Deste modo a finalidade da arte para Kant é o proporcionar o prazer estético, só assim podendo elevar o sujeito para uma harmonia entre a imaginação e o entendimento, que é subjectiva, necessária e universal.
A questão da finalidade da arte foi abordada por Hegel de uma forma diversa. A sua estética é uma teoria da obra e da produção artística, e uma história filosófica da arte e da literatura. A estética hegeliana dá ênfase ao sentido e ao conteúdo das obras de arte e toma essas obras por superiores quando contêm a ideia mais concreta e melhor articulada. A Ideia ou Absoluto atravessa a fase lógica (pensamento), da matéria (natureza) e do Espírito (mundo humano e divino). Nesta última fase, da Filosofia do Espírito Absoluto, passa pela arte, pela religião e pela filosofia, todas elas manifestações do Absoluto. Sem arte, religião e filosofia o homem seria um puro matemático ou um puro animal. A arte tem a finalidade de revelar o Absoluto a si próprio: ela é mais do que aquilo que quem a faz julga que ela é. A arte desemboca na superação da arte, porque depois o Absoluto exprime-se na religião, já não como figuração mas como representação, que será superada pela filosofia que já é só pensamento. No fim do percurso estará a Verdade.
Bernard Teyssedre refere que existem duas direcções da diferenciação da Ideia: verticalmente pelas formas (Simbolismo, Classicismo e Romantismo) e horizontalmente pelas figuras, (arquitectura, escultura, música e pintura). Ao sintetizarmos esta dialéctica, tendo em consideração que para cada forma podem várias figuras, chegaremos a um esquema: a arte passou primeiro pela fase em que tinha maior matéria e menos espírito, que corresponde sobretudo à arte simbólica e à arquitectura, sendo exemplo as sociedades pré-clásicas, nomeadamente o Egipto. Depois a arte passou por uma fase em que houve um equilíbrio do espírito e da matéria, entre o que se mostra e o modo como se mostra, que é a arte clássica e a escultura, sendo o maior exemplo a Grécia clássica. A racionalidade absoluta é atingida quando já não há oposição entre contrários e a identificação é alcançada. Por fim passou a haver mais espírito do que matéria, na arte romântica e cristã, sendo a pintura, com duas dimensões apenas, uma forma de expressão preferencial. Mas a evolução é no sentido das artes como uma só dimensão, o tempo: a música e sobretudo a poesia, artes de interioridade. A partir daí o conteúdo espiritual ilimita-se, saímos da arte. A história da arte da época cristã representa um esforço da arte para fazer alcançar por ajuda do sensível qualquer coisa de espiritual. A arte não imita o mundo mas revela-o. É um pensamento que ganha visibilidade. Tem como finalidade elevar para outra coisa.
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Texto de Margarida Elias.

O tempo

Pintura de Irene Vaz Serra de Moura.
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... o tempo e a linguagem da literatura (e da arte em geral) subtraem-nos à vertigem e à voragem do dia a dia, instaurando um diálogo intermitente feito de temporalidades específicas que rasgam a teia do tempo exterior e nos libertam da sua ordem, devolvendo-nos a um tempo puro, i.é, liberto de temporalidade.

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Eduardo Lourenço (1998).
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A pintura de Irene Vaz Serra de Moura é uma cópia do quadro Josephus Laurentius Dyckmans, The Blind Beggar (1853, originally uploaded by Gandalf's Gallery).

o meu antigo quarto


quinta-feira, 15 de maio de 2008

Porque a Crítica de Arte é fruto da época contemporânea?

Pintura de Manet, Retrato de Zola (Museu d'Orsay, Paris).
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A crítica de arte surgiu na segunda metade do século XVIII, nomeadamente em França, com Diderot. Foi no nesse século que se pretendeu dar a todo o conhecimento um fundamento crítico e já não dogmático, procurando fundamentar-se cientificamente o juízo crítico sobre o valor das obras de arte. Foi também nessa altura que surgiu a tradição da crítica se ocupar principalmente da arte contemporânea (Argan). Quanto à questão de porque é que a crítica de arte se desenvolve na época contemporânea, julgo encontrar três motivações principais: 1) a subjectivação na compreensão do mundo; 2) o aparecimento de museus e exposições; 3) a implantação de regimes políticos democráticos.
Para os Antigos existia uma Ordem Universal, regida por três valores que se interligavam: o Bom, o Belo e o Verdadeiro. Estes valores eram de origem divina, influenciando tanto o macrocosmos como o microcosmos, sendo este um espelho daquele. Com a época moderna surgiu a consciência de um ponto de vista humano sobre o mundo, que se reflectiu pela primeira vez na vontade de dominar a realidade, ordenando-a segundo as regras da perspectiva. Um marco importante na história da subjectivação do mundo é a frase de Descartes: «Penso, logo existo», que é uma afirmação do orgulho do homem. Com Descartes surge a ideia que partindo de si o sujeito pode estabelecer valores válidos também para os outros
. Outro passo importante foi a revolução coperniciana de Kant. Com ele é o sujeito que apreende o fenómeno, com as suas faculdades de sensibilidade e inteligência, passando a ter um ponto de vista sobre a realidade ligado à subjectividade, em simultâneo objectivo e universal na medida em que todos os homens têm as mesmas capacidades de captação e compreensão dos fenómenos. Assim possibilitava uma intersubjectividade que permitia a existência de uma crítica.
A nova importância dada ao sujeito, primeiro através da razão, depois da sensibilidade, irá dar origem a um novo entendimento da obra de arte. Com o tempo esta deixa de ser admirada por estar de acordo com regras preestabelecidas, mas sim pela sua capacidade de estabelecer uma comunicação sensível entre o criador e o receptor. A crítica de arte assenta na relação entre um sujeito e uma obra: o sujeito tem consciência de si, e tem a noção que interage com a obra. No século XX, dominado pelo individualismo e pela fragmentação do Eu, prevalece um subjectivismo total e o relativismo absoluto. Para Nietzsche não há factos, mas sim interpretações. O valor estético passa a ser algo que é atribuído pelo sujeito que observa, o que culminará no «olho estético» de Marcel Duchamp. O criador da obra passa a ter toda a importância e é a atitude estética que passa a contar.
O surgimento da crítica de arte foi também fruto de do estabelecimento de Academias de Belas-Artes, com exposições anuais (Salon) e catálogos; do surgimento dos primeiros museus; do aparecimento (sobretudo a partir da segunda metade do século XIX) de exposições particulares, de galerias de arte e de um mercado de arte. Ao contrário de épocas anteriores, em que as obras estavam guardadas em colecções privadas às quais só alguns poderiam ter acesso, a partir do século XVIII as obras passaram a ser apresentadas a um público mais variado, que passava a poder ver um grande conjunto de obras, confrontá-las e relacioná-las, alargando assim a sua cultura visual e estética.
Por outro lado, no século XVIII o Salon tornou-se num acontecimento considerável e objecto de uma crítica especializada. Os primeiros Salons tinham suscitado curiosidade e comentários, sendo as primeiras críticas impressas datadas de 1737. Diderot foi o principal redactor entre 1759 e 1781, publicando pela primeira vez em jornais o efeito que a exposição produziu nele. Como disse Venturi, «(...) o século XVIII trouxe, com as exposições de arte, especialmente em França, a oportunidade das crónicas escritas. Isto é: a crítica de arte encontrou uma sua forma natural. Já não se tratava de inserir juízos entre as notícias sobre os artistas e as normas da arte: tratava-se de escrever unicamente para dizer a própria opinião sobre um grupo de obras e artistas. E como esses artistas eram contemporâneos do crítico (...) impunha-se, em resumo, o desejo de encontrar uma relação entre a síntese da obra de arte e todos os elementos que a constituem. A crítica de arte, embora executada de modo apressado e superficial, assumia o carácter de crítica da actualidade. E isso não teria sido possível sem a filosofia do iluminismo e o seu novo interesse em encontrar a razão dos factos pela análise desses mesmos factos»
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Resta ainda notar que a resposta à questão sobre a relação entre a crítica de arte e a época contemporânea, pode ainda ser ligada a situações políticas: em vez de um rei absoluto que impõe o seu gosto à corte, e aos artistas, já que é o principal cliente, a par da Igreja, no século XVIII, e sobretudo a partir do ano de 1789, que marcou historicamente o início da época contemporânea, há um crescimento progressivo da influência da burguesia, mesmo ao nível do gosto, dominando cada vez mais as encomendas. A monarquia constitucional e a progressiva afirmação da democracia, a repartição do poder por várias pessoas, conduzem por sua vez a uma proliferação dos gostos. Dessa forma a crítica de arte torna-se uma necessidade cultural, ao nível da informação crítica feita por uma pessoa especializada.
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Texto de Margarida Elias.

Cada ano que passa é um laço que nos prende


  «... cada ano que passa é um laço que nos prende».
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Raul Brandão

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Avó Fernanda com Gonçalo na Quinta de Santana em 1975


Metade daquilo que valemos, moralmente e intelectualmente, devemo-lo aos contactos e às sugestões dos indivíduos que nos têm rodeado através da existência.
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Ramalho Ortigão.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Eu


Esta fotografia foi tirada em casa da avó Fernanda, tinha dois anos.