sexta-feira, 16 de maio de 2008

Aporias (dificuldades) Inerentes à Finalidade da Arte


Escultura de Praxíteles, Hermes e Dionísio (Séc. IV a.C., Museu Arqueológico de Olímpia).
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Falar sobre a finalidade da arte é, como referia René Huyghe, uma questão difícil, que «já é audacioso colocar, quanto mais satisfazer». É uma aporia da estética, uma expressão de uma incerteza, o embaraço daquele que não vê nenhum caminho diante dele e se pergunta por onde passar. Ao procurarmos dar uma resposta deparamos com uma primeira dificuldade: qual o conceito de arte que está em causa. Em termos gerais a arte pressupõe o emprego de certas qualidades de pensamento ou de destreza manual na realização de uma obra. A arte pode ser entendida como uma técnica (tékné), mas em termos de estética as definições de arte que mais interessam são a das artes liberais (sobretudo no que diz respeito á retórica) e a das belas-artes. A nossa resposta irá limitar-se às duas últimas categorias, o que nos permite dar já uma finalidade para a arte: as suas qualidades estéticas.
A arte é uma transfiguração da existência, uma figuração que vai além da realidade perceptiva, é aquilo que fica como testemunho de um encontro entre o imaginário e as condições reais do mundo. É uma experiência de reestruturação do mundo, transforma o modo como olhamos o real. Seja qual for a sua utilidade extrínseca a arte surge como absolutamente essencial, sem ter havido uma única sociedade humana que tenha podido passar sem ela e que não lhe tenha encontrado uma forma à sua medida. A obra de arte é um reflexo do homem e é humana, porque foi inventada pelo homem e porque existe pela marca do homem.
A finalidade da arte poderá ser a manifestação de um ser (o artista ou uma comunidade), a exploração do mundo exterior, o embrenhar-se no encontro do Outro, do fantástico e do sobrenatural, poderá ser de elo entre o ser de cada um (finito) e o ser infinito (Infinito, Deus). A ideia que a beleza de uma coisa pode ter a adaptação da sua forma ao seu fim é antiga, e a finalidade da arte tendeu a ser sempre outra que não a arte. Deste modo, a arte teve funções religiosas, políticas, económicas, sociais. Mesmo hoje se pode ter em consideração que o útil e o belo podem, não somente ser compatíveis, mas sustentar-se, se a beleza de uma forma é devida à perfeita adaptação desta forma ao uso para o qual o objecto foi feito. O fenómeno da arte pela arte é recente, contemporâneo da criação do museu de belas-artes, visto que quando as obras de arte estão num museu o seu único propósito passa a ser estético.
O conceito da finalidade da arte teve evoluções, mas iremos apresentar aqui apenas três dos momentos: da Escolástica, de Kant e de Hegel. Na estética medieval havia uma concepção intelectualista da arte, já que o belo punha em relação a forma com o puro conhecimento, dentro de uma prioridade conferida à inteligência na captação do belo. A arte tinha uma finalidade sobretudo didáctica. Para São Tomás de Aquino a finalidade da arte estaria na perfeição do objecto criado de acordo com o fim para que foi criado. A arte é entendida do ponto de vista da verdade, procura-se o que agrada à inteligência. Procura-se o Ser uno, verdadeiro e bom: unidade intrínseca, que permite conhecer o objecto e identificá-lo. Deus é o Ser Absoluto e a Beleza Absoluta. Há uma finalidade metafísica do belo que nos leva a Deus.
Foi no período moderno a arte começou a ser encarada como merecedora de uma atenção estética, o que se liga á emergência da subjectividade. A preparação deu-se nos sécs. XV e XVI com a instituição da perspectiva pictural, a criação de um «espaço plástico que de pleno direito é polarizado pelo ponto ideal que é o olhar do espectador». Foi no século XVIII que surgiu a estética, uma teoria da modalidade da subjectividade que é a sensibilidade. Com Kant, desenvolveu-se a ideia da finalidade em estética, criando a fórmula da finalidade sem fim. Segundo a sua teoria, a arte estava subordinada a fins éticos, onde o desinteresse estético servia de preparação, já que era uma crítica implícita à prática social onde tudo se fazia por interesse.
Na sua estética Kant colocou-se sobretudo no ponto de vista do contemplador - até porque para ele a forma primordial da beleza está na natureza. Para Kant a beleza tem uma finalidade subjectiva desinteressada, universalmente comunicável e que proporciona um prazer necessário. A finalidade da arte para a estética de Kant está relacionada com a finalidade do belo, e sobretudo com a atitude estética.
Kant prefigurou uma atitude estética que se destaca pelo seu purismo. «A beleza livre, sobre a qual se debruça o juízo estético puro, está liberta de qualquer subordinação a um fim, de todo apelo à volúpia, de todo o significado definível, de toda a fórmula de composição». O belo é o que está conforme a um fim (zwecknässigkeit) sem fim. A finalidade do belo não está no objecto, mas sim no sujeito que o observa. Deste modo a finalidade da arte para Kant é o proporcionar o prazer estético, só assim podendo elevar o sujeito para uma harmonia entre a imaginação e o entendimento, que é subjectiva, necessária e universal.
A questão da finalidade da arte foi abordada por Hegel de uma forma diversa. A sua estética é uma teoria da obra e da produção artística, e uma história filosófica da arte e da literatura. A estética hegeliana dá ênfase ao sentido e ao conteúdo das obras de arte e toma essas obras por superiores quando contêm a ideia mais concreta e melhor articulada. A Ideia ou Absoluto atravessa a fase lógica (pensamento), da matéria (natureza) e do Espírito (mundo humano e divino). Nesta última fase, da Filosofia do Espírito Absoluto, passa pela arte, pela religião e pela filosofia, todas elas manifestações do Absoluto. Sem arte, religião e filosofia o homem seria um puro matemático ou um puro animal. A arte tem a finalidade de revelar o Absoluto a si próprio: ela é mais do que aquilo que quem a faz julga que ela é. A arte desemboca na superação da arte, porque depois o Absoluto exprime-se na religião, já não como figuração mas como representação, que será superada pela filosofia que já é só pensamento. No fim do percurso estará a Verdade.
Bernard Teyssedre refere que existem duas direcções da diferenciação da Ideia: verticalmente pelas formas (Simbolismo, Classicismo e Romantismo) e horizontalmente pelas figuras, (arquitectura, escultura, música e pintura). Ao sintetizarmos esta dialéctica, tendo em consideração que para cada forma podem várias figuras, chegaremos a um esquema: a arte passou primeiro pela fase em que tinha maior matéria e menos espírito, que corresponde sobretudo à arte simbólica e à arquitectura, sendo exemplo as sociedades pré-clásicas, nomeadamente o Egipto. Depois a arte passou por uma fase em que houve um equilíbrio do espírito e da matéria, entre o que se mostra e o modo como se mostra, que é a arte clássica e a escultura, sendo o maior exemplo a Grécia clássica. A racionalidade absoluta é atingida quando já não há oposição entre contrários e a identificação é alcançada. Por fim passou a haver mais espírito do que matéria, na arte romântica e cristã, sendo a pintura, com duas dimensões apenas, uma forma de expressão preferencial. Mas a evolução é no sentido das artes como uma só dimensão, o tempo: a música e sobretudo a poesia, artes de interioridade. A partir daí o conteúdo espiritual ilimita-se, saímos da arte. A história da arte da época cristã representa um esforço da arte para fazer alcançar por ajuda do sensível qualquer coisa de espiritual. A arte não imita o mundo mas revela-o. É um pensamento que ganha visibilidade. Tem como finalidade elevar para outra coisa.
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Texto de Margarida Elias.

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