quarta-feira, 28 de maio de 2008

Rafael Bordalo Pinheiro e o Arts and Crafts de William Morris

Azulejo da Fábrica de Rafael Bordalo Pinheiro, Maçaroca (Museu de Cerâmica, Caldas da Rainha).
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Rafael Bordalo Pinheiro era já famoso como ilustrador e caricaturista quando iniciou a sua actividade como ceramista na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. Esta fábrica tinha não só uma função industrial mas procurava também dar um novo alento e modernização à cerâmica das Caldas, criando ainda um espaço onde fosse administrado o ensino desta actividade. Deste modo, na medida em que houve uma «articulação da indústria com o ensino das artes e ofícios», o projecto pode remeter, como escreveu Cristina Horta, «para a ideologia do Arts and Crafts», criada por William Morris por volta de 1860. Tendo iniciado a sua actividade artística como pintor, ligado ao grupo dos Pré-rafaelitas, Morris interessou-se pela «arte utilitária», nomeadamente pela arquitectura doméstica e decoração de interiores. O sucesso das suas ideias levou a que, em pouco tempo, se fundassem outras sociedades e organizações com objectivos similares que contribuíram para a revalorização das artes decorativas, as quais são genericamente incluídas no termo Arts and Crafts Movement.
A iniciativa de Rafael Bordalo Pinheiro no campo da cerâmica começou cerca de vinte anos depois do movimento liderado por Morris. Ramalho Ortigão afirmou que foi ele quem deu a Bordalo a ideia de fundar uma fábrica de cerâmica nas Caldas da Rainha. Dizia que a ideia viera-lhe do facto da indústria tradicional das Caldas se achar em grande «decadência», apesar de ser detentora de antigos e «preciosos» modelos. Pensava que, na arte portuguesa, só havia um decorador, capaz de intervir de «um modo completo (...) n’uma industria d’arte, remanejando-a em concorrencia com as industrias similares do resto da Europa e fazendo d’ella um novo elemento de riqueza e de gloria nacional». É possível que tenha sido Ramalho quem transmitiu a Bordalo o conhecimento do movimento Arts and Crafts.
O projecto da fábrica começou a delinear-se desde 1883, sendo esta fundada um ano depois. Os estatutos davam à fábrica uma intenção de melhorar a qualidade e o desenho dos produtos, o que se coadunava com as intenções que impulsionaram William Morris. Por outro lado, o projecto da fábrica cedo se interligou com o desenvolvimento do ensino da cerâmica, o que surgiu no decurso da criação de escolas industriais no país. A função da fábrica era a de complementar o ensino teórico administrado na Escola. Os alunos eram considerados «aprendizes» e recebiam o apoio dos «alumnos mais adiantados», dentro de um espírito comunitário que tinha paralelo com o exemplo do Arts and Crafts. Essa ideologia, também se notava na forma como era vivido o trabalho, pois, tal como refere Sousa Viterbo, «o eminente artista conseguira com o seu exemplo formar uma porção de operarios habilissimos, que trabalhavam por gosto, com enthusiasmo, e que iam desenvolvendo, a par do mestre, n’um impulso natural, as suas faculdades estheticas».
O empenho de Rafael Bordalo Pinheiro na fábrica das Caldas da Rainha demonstra, de certa forma, alguma vontade de se unir ao operariado das artes industriais. Assim, ao longo de 1884, Rafael andou bastante ocupado com a fábrica, descurando as suas caricaturas no António Maria. Na altura da greve dos jornalistas em Janeiro de 1885, - insatisfeito com as críticas que lhe haviam feito os seus colegas, acusando-o de só ter aderido à greve por não ser afectado por ela - Bordalo decidiu interromper a publicação do António Maria, dizendo: «N’estes termos, não podendo ser nem político nem jornalista vou fazer-me simplesmente operario». Se é verdade que voltou pouco depois às caricaturas, iniciando a publicação dos Pontos nos ii, é certo que não deixou a fábrica das Caldas e o seu interesse em trabalhar directamente com os operários não passou despercebido a Joaquim de Vasconcelos, que o apelidou de «primeiro operario da sua fabrica».
Noutro ponto de vista, colocando a hipótese de existir alguma ligação estética entre o projecto de Morris e o de Rafael Bordalo Pinheiro, devemos notar que sobressaem sobretudo as diferenças. Morris era «um apóstolo da simplicidade». Bordalo seguiu a tradição caldense de Manuel Cipriano Gomes (O Mafra), a qual se enquadrava na tradição de Palissy. Contudo, se considerarmos que esta louça procurou rejuvenescer a arte tradicional, então também por aqui se pode fazer a ligação ao Arts and Crafts. Essa ideologia sente-se sobretudo nos padrões de azulejos, alguns deles desenhados dentro do gosto da Arte Nova. É de sublinhar que, tal como escreveu Ramalho Ortigão, os azulejos são «produtos da mais inteira perfeição artística e industrial. Nada mais barato, mais artístico no adorno dos tetos, das paredes, das fachadas dos prédios». Ora, a vontade de fabricar um produto belo, útil e barato adequava-se ao exemplo que fora dado por Morris.
Ao compararmos ambos os projectos, notamos que o de Bordalo Pinheiro partilhava ideias semelhantes às do Arts and Crafts, mas sem existir uma filiação propriamente dita. Pensamos que o que se passou foi a convergência de dois fenómenos distintos, que conduziram a essa comunhão ideológica. Primeiro, o facto de, no espaço de vinte anos que decorreram entre o caso inglês e o português, as ideias de Morris terem sido divulgadas na Europa, contribuindo para um movimento internacional de renascimento das artes decorativas, o qual acabou por desembocar no advento da Arte Nova. Depois, a forma como a ideia terá chegado a Bordalo, leva a crer que houve alguém, mais informado sobre o que se passava no resto da Europa, que formou o elo de ligação. Cremos que foi Ramalho Ortigão, conhecedor do movimento Arts and Crafts (directamente e/ou através de Joaquim de Vasconcelos), quem formou esse elo entre o movimento inglês e a fábrica das Caldas. Mas Bordalo, ao desenvolvê-la, adaptou-a à situação nacional e criou um dos primeiros empreendimentos portugueses que se dedicou às artes industriais e foi gerido por um artista, tendo como fundamento a renovação de uma forma de artesanato tradicional. Apesar das dificuldades financeiras, que comprometeram parcialmente esse projecto, ela operou uma transformação desse artesanato no sentido de uma dignificação artística que constitui um sinal da modernidade.

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Texto de Margarida Elias.


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