quarta-feira, 11 de junho de 2014

Coisas

Natureza-Morta Vanitas (séc. XVIII, Paço dos Duques)
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O tema da posse de objectos, e do sentimento de culpa que por vezes ele gera - sobretudo em tempos de crise económica - tem andado na minha mente, nomeadamente por causa de algumas leituras que tenho feito.
Entre essas leituras, destaco um artigo de Bjornar Olsen («Material Culture after Text: Re-Remembering Things», Norwegian Archeological Review, vol. 36, n.º 2, 2003), que advoga mesmo que: «Things, objects, landscapes, possess “real” qualities that affect and shape both our perception of them and our cohabitation with them» (p. 88). Noutro momento, o mesmo autor lembra: «We all know that we can feel affection for an artifact, fall in love with a jacket, a new Porsche 911 or a teddy bear – we mourn when they fall to pieces – when they die (…).» (pp. 94-95)
Na verdade, julgo que é mais fácil assumir moralmente um sentimento de afecto por "coisas" quando se tratam de artefactos culturais - que (no fundo) são "desculpabilizados" pelo seu valor intelectual, histórico, estético ou espiritual. Mas, e todos os outros objectos, coisas, lugares?
Olsen (neste ponto, seguindo Heidegger), afirma que não somos observadores separados dos objectos, mas pessoas se preocupam com as coisas que usam: «These things are so close to us, our being-in-the-world is so enmeshed in networks of things, that we do not see them unless they call attention to themselves by breaking down, are in the wrong places or are missing» (p. 96). O mesmo autor cita Emile Durkheim, quando este afirma: «...it is not true that society is made up only of individuals; it also includes material things, which play an essential role in common life.» (p. 97). No fim do artigo, Olsen conclui: «I want us to pay more attention to the other half of this story: how objects construct the subject.» (p. 100)
Embora eu seja uma pessoa que tende a preferir o ponto de vista tradicional (humano) não posso deixar de sentir que Olsen está correcto, na medida em que a separação entre os objectos (aqui incluindo a natureza) e as pessoas não é tão linear como pode parecer à primeira vista. De facto, concordo com Olsen quando este, ancorando-se na network theory de John Law, afirma:
«Reality is not to be found in essences, but in imbroglios and mixtures, the seamless and rhizome-like fabrics of culture and nature that link humans and non-humans in intimate relationships. It is a democratic and inclusive regime, everything can become actors (or actants) by being included into a network and assigned properties to act.» (p. 98)

4 comentários:

APS disse...

Gostei de ler as suas reflexões e as citações que faz,Margarida, muito embora esse sentimento de culpa por "possuir" me seja alheio e escassamente o sinta. A minha colecção de selos, por exemplo, é o "campo santo" de, pelo menos, 3 outras colecções anteriores, uma boa parte dos meus livros tiveram donos anteriores...
Mas também tenho a noção objectiva de que estou de passagem e que esses e outros "meus" objectos virão a ter outros donos. Só desejo que os estimem tanto como eu. E os tratem bem.

Margarida Elias disse...

Quanto ao sentimento de culpa, tenho dias. Também tenho muitas "coisas" pelas quais tenho muita estima - a maior parte delas com maior valor afectivo do que material. Há outras coisas que bem gostava de ter, se pudesse, e, na maioria dos casos, são livros. Boa noite!

LuisY disse...

Eu sou um ajuntador de tralha que herdei ou comprei e sinto esse sentimento de culpa. Talvez o Cristianismo, que nos ensinou que nos devemos desligar dos bens materiais e que daqui não levamos nada, nos provoque esse sentimento que estamos a preceder mal. Se houver um tremor de terra mais mais valente nesta cidade de Lisboa, os meus investimentos em faiança e porcelana dos últimos dez perder-se-ão em segundos. Também não faço a menor ideia se os meus filhos irão valorizar as velharias que acumulei. Talvez uns dias depois da minha morte chamem o dono de uma loja de velharias para comprar por atacado tudo aquilo ao qual me afeiçoei tanto.

E no entanto, o nosso mundo é uma civilização material. Os museus estão cheios de colecções feitas por gente que acreditava que os bens materiais não eram meras vanitas. Os museus de arqueologia expõem tesouros encontrados em túmulos de homens e mulheres que acreditavam que os iriam usar numa vida para além da morte.

Talvez no fundo o coleccionismo se relacione com as concepções da vida e da morte de cada um individuo ou de cada civilização.

Bjos

Margarida Elias disse...

LuisY - Focou alguns problemas em que meditei ao ler este artigo e escrever este post. Realmente, parece-me que o sentimento de culpa com as coisas materiais tem origem cristã, mas também existe noutras religiões voltadas para a espiritualidade.
No entanto, vivemos realmente num mundo repleto de coisas e cada vez mais elas ganham espaço nas nossas vidas. A separação entre o humano/espiritual e o resto da realidade - incluindo a natureza e os objectos criados pelas pessoas - é arbitrária. Como em muitos casos, julgo que no meio está a virtude - nem demasiado materialistas, nem demasiado espirituais... Bjs!