quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Um desabafo I - Sobre a existência, a mudança e a banalização

Caspar David Friedrich, Ein Spaziergang in der Abenddämmerung (A Walk at Dusk) (ca. 1830-35, J. Paul Getty Museum)
-
Ontem, no Arpose, surgiu uma citação de Charles Péguy (1873-1914), que diz: «Quarenta anos é uma idade terrível. Porque é a idade em que nos transformámos naquilo que somos.»

Independentemente da interpretação que se faz da frase, ela deixou-me a pensar, porque eu já tenho 45 anos. E já mudei tanto que me sinto por vezes como a Alice:
'Who in the world am I?' Ah, that's the great puzzle!” 
Joaquín Sorolla, Paisaje, San Sebastián (1911. Museo Sorolla, Madrid)

Numa coisa estou certa: os meus gostos mudaram com o tempo. Há gostos que mantenho desde há anos, desde que me lembro de mim. Para mim Michelangelo e Leonardo da Vinci permanecem duas referências no meu universo estético e cultural. Continuo a admirar Kant e Voltaire. Continuo a gostar muito de Eça de Queiroz. Continuo a ter os Direitos do Homem como referência ética.

Mas há gostos que já não tenho, em grande medida devido ao excesso provocado pela internet. Outro dia li uma frase de Umberto Eco, recentemente falecido, que dizia:
"A informação banaliza os acontecimentos. Dou um exemplo: a primeira vez que se viram na televisão imagens de uma criança negra cheia de fome e com moscas a rodeá-la foi um momento marcante, só que agora já ninguém lhes liga devido à vulgarização. Alguém no outro dia proibia a divulgação de imagens dessas crianças negras com moscas à volta porque a sua repetição era perigosa. As pessoas habituam-se."
Esta citação, para mim, tem pelo menos duas leituras. Por um lado, o facto de eu confirmar (através da opinião deste homem, que também sempre admirei) que o excesso de informação banaliza a informação. É uma das razões porque sou contra o excesso de violência na televisão, nos video-jogos (sobretudo os realistas) e nos filmes.


Doutro ponto de vista, mais alegre, esta citação de Eco faz-me pensar na banalização da arte e da cultura, através da repetição abusiva de imagens ou músicas, na televisão, na rádio e na internet (entre outros meios de comunicação), desgastando a capacidade de nos emocionarmos.

Carl Larsson, Kurragömma (Hide and Seek) (1901)

Contudo, em contrapartida, tenho descoberto outros artistas que me vão ao encontro da alma. Talvez porque eles são menos divulgados, ou talvez porque eu própria tenho mudado.
Dentro das artes visuais, continuo a não ser fã de Picasso e Dali. No entanto, cada vez gosto mais de Poussin e Seurat.
Já não aprecio tanto Monet como antes, mas Sorolla e Carl Larsson são, de momento, uns dos meus pintores preferidos.
Outros artistas permanecem nas minhas preferências, como é o caso de Vermeer, Rembrandt (embora já muito banalizado), Friedrich, Klee, Kandinsky e Miró.

Nicolas Poussin, Landscape with a Calm (1650 - 1651, Getty Center)

No conjunto, acho que há um fio condutor em mim que permanece. Continuo a adorar a arte e a natureza, a espiritualidade, a filosofia, a mitologia, a fantasia e a imaginação.
Porém, outras coisas mudaram (ou evoluíram), desde as mais complexas até às mais prosaicas. Por exemplo, descobri agora, com esta idade, que até gosto de gelatina.

9 comentários:

Presépio no Canal disse...

De gelatina sempre gostei, mas tem de ser Royal (nas holandesas não pego, que são muito açucaradas e o sabor enjoa-me).
Gostei muito de ler esta tua reflexão. Podes continuar com mais exemplos, sobretudo nas mudanças. Acho tão interessantes estas reflexões.
No meu caso pessoal, tb mudei muito nos últimos 2 anos ( aspectos que precisavam de mudar desde que me lembro). Estou a gostar muito dos 40. Tem sido uma década libertadora...
Bjs

Margarida Elias disse...

Eu gosto da gelatina dos super-mercados, vê lá tu! Ou da Royal. Daquelas que já vêm em caixinhas - e de morango.
É verdade, uma pessoa muda e às vezes tem mesmo de ser. Por vezes é bom, outras vezes é estranho.
À custa da rádio M80, eu que adorava Bryan Adams, agora não consigo ouvi-lo. É assim!
Beijinhos!!

APS disse...

Não sei se este comentário é uma resposta, não será, no entanto, um contraditório..:-) Mas, aí vai:
Péguy terá feito, demasiado cedo, o seu balanço, porque morreu com 41 anos, apenas.
Muito embora eu considere que a "quarentena" representa uma etapa muito importante. Por essa altura (idade), há sempre uma depuração.
Algumas mulheres revoltam-se, com a vida que tiveram (tratamento dos filhos, lida da casa, trabalho fora, às vezes, distantes, opções subjectivas e erradas do cônjuge...) e encetam novos caminhos, os homens, de repente sôfregos, começam a ter mais pressa de viver. Mas, ao mesmo tempo, começam a aparecer algumas cristalizações "definitivas". Como também uma maior exigência de gosto (a propósito, só comecei a gostar de Picasso muito tarde, e por causa do seu traço, nos desenhos...), um apuramento do sentido crítico, algum pragmatismo que obscurece os ideais juvenis; mas também começa a nascer (ou a desenvolver-se) a ironia, o cepticismo, uma impaciência pouco cristâ que não desculpa a estupidez humana de tanta gente...
Ao contrário de si, Margarida, e com bastantes mais anos, consigo ver-me em continuidade. Não digo coerência, embora a preze, mas numa sequência natural, em que me reconheço, dos meus 20 anos ingénuos e assertivos, na sua falta própria de experiência.
Cresceram-me, entretanto, uns repentes de ternura, em circunstâncias improváveis..:-)
Uma boa tarde!

Presépio no Canal disse...

Como se costuma dizer, " O que é demais enjoa!". ;-)
Em forma de repetição e que me levou ao "já não posso mais", foi o " I just called to say I love You" do Stevie Wonder. :-)))

Margarida Elias disse...

APS - Achei interessante a sua resposta / comentário. Há certamente uma continuidade, mas, no meu caso, também há mudanças.
De Picasso gosto um pouco - sobretudo pela fase azul, e porque acho que deve ter sido um homem muito inteligente.
De Dali é que não gosto quase nada - com excepção de um filme que ele fez para a Casa Encantada do Hitchcock.
Boa tarde e obrigada!

ana disse...

Margarida,
Gostei desta sua reflexão. Devo dizer que as minhas opções, raízes de gostos e estética não sofreram grandes mudanças. Evoluíram, comecei a apreciar mais os pormenores. Gosto de Picasso e de Dalí, mas não de todas as obras, e sempre gostei. Zanguei-me com Dalí mas já lhe perdoei... a violência contra os gatos. Gosto dos artistas que focou. Quanto a banalizar-se, é verdade que há esse risco, mas prefiro que se corra o risco do que ver coisas feias.
Observe a tela, "Criança Observando o Nascimento do Novo Homem" de Dalí e diga-me, Margarida, não sente nada?

Claro, que os gostos são relativos. Foi preciso haver um Dalí para o movimento se expandir, ou talvez não, não sei. Mas o movimento chegou até aos nossos dias.

Todavia, julgo que para gostarmos e não acharmos que o uso da imagem é banalizada tem que ser tratada de forma equilibrada e com gosto, tudo depende do que se constrói à sua volta.
Beijinho grato. :))

Margarida Elias disse...

Ana - Acho que as pessoas diferem e os gostos diferem. Não sei que parte terá de questões de alma ou de genética, mas tenho quase a certeza que muito se deve ao percurso das pessoas.
Na verdade, não aprecio Dali, o que tem sobretudo a ver com questões estéticas e formais. Não gosto das formas que ele utiliza, não gosto das cores, não gosto dos conteúdos, não gosto dos conceitos. Estudei o Surrealismo na Faculdade, no Mestrado, e dos pintores Surrealistas, o meu preferido é Yves Tanguy, que é mais abstracto.
Beijinhos! :-)

Margarida Elias disse...

Ana - Revendo Tanguy concluo até que prefiro Max Ernst. De facto, não sou muito fã do Surrealismo na pintura, se me cingir aos pintores que fizeram parte do grupo oficial. Beijinhos!

ana disse...

Margarida,
Obrigada pela sua resposta. Gosto dos surrealistas, da ruptura que criaram. Claro que é muito pessoal esta escolha. Compreendo que não seja do seu agrado.
Beijinho.:))