terça-feira, 3 de junho de 2008

O Retrato de Antero de Quental e a Conjuntura Cultural do fim do Século XIX


Pintura de Columbano Bordalo Pinheiro, Retrato de Antero de Quental (1889, Museu do Chiado, Lisboa).
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Em 1889, Columbano visitou pela primeira vez o Museu do Prado em Madrid e viajou até à Exposição Universal de Paris, onde o seu irmão, Rafael Bordalo Pinheiro, fizera um importante trabalho na decoração das salas portuguesas, que lhe valeu a Legião de Honra. Era o início de um novo período na pintura de Columbano e também da vida cultural e política nacional.
Nesse ano, Columbano foi autor de uma das suas obras mais emblemáticas - o retrato de Antero de Quental (1889, MNAC), poeta que dois anos depois se iria suicidar (m. 1891). Segundo as palavras do retratado, o quadro estava «muito bom como pintura, mas idealizado, como todas as composições desse pintor neo velasquiano, no sentido do fantástico e tenebroso». Filosoficamente, Antero era contra o Naturalismo e o Positivismo. Tal como ele escreveu a Oliveira Martins: «Ai da filosofia que não sabe satisfazer ao mesmo tempo a razão dos lógicos, a alma dos poetas e o coração dos fortes». Tendendo para um idealismo subjectivo, defendia a superioridade do eu moral sobre os deuses e a natureza. Antero apreciava o idealismo na arte, mas não se revia no reflexo sombrio que o artista concebera.
A história deste retrato ficou envolvida em lendas respeitantes à maneira como fora realizado. A anedota mais comum é que o pintor mostrara o desejo de o retratar e um dia o poeta lhe apareceu batendo à porta. Era um homem fulvo, levemente curvo, calçando grandes botifarras de caminheiro. Conversou com o pintor enquanto este lhe fez o retrato e partiu como entrara, sem sequer ter tido a curiosidade de olhar a tela. A verdadeira história terá sido outra, relatada pelo próprio Columbano. Realmente ele lhe pedira para vir, mas o «resto é tudo phantasia. Estou a vel-o com os seus olhos azues e as suas barbas loiras. Vestia bem, sem afectação e sobriamente. Veio a meu pedido e depois continuou a vir. Passava tardes inteiras no atelier, sentado n'uma cadeira, mãos crusadas, escutando interessado ou absorto em pensamentos. Deslumbrava pela sua simplicidade e pela sua erudição (...). Era calmo, delicado, affavel. Nenhuma tragédia transparecia na sua mascara alegre quasi. Por isso foi para mim um acontecimento inesperado a notícia do seu suicídio. E bastante tempo em meu cerebro labutou esse desgosto». O facto é que a imagem pintada por Columbano parecia anunciar a morte do poeta e isso foi assinalado pela maioria dos críticos que se debruçaram sobre ela.
O retrato de Antero, busto esfumado cujo rosto se define num fundo sombrio, dá o mote para a tipologia de retrato que o pintor desenvolve a partir de 1890. Foi nessa década que surgiu, por toda a Europa, uma crescente adesão aos valores idealistas e ao Simbolismo. Estabelecido em Paris, Eça de Queiroz notava que se estava a assistir ao «descrédito do naturalismo»: «Sobre a exacta, luminosa, sã e suculenta pintura da escola francesa vai-se espalhando e, cada vez mais densa, uma névoa de misticismo. Todas as formas se afinam, se adelgaçam, se esvaem em diafanidade – no esforço de traduzir e pôr na tela o não sei quê que habita dentro das formas, a pura essência que conserva apenas o contorno indefinido do seu molde material». Os retratos eram agora «esfumados, envoltos numa cinza esparsa do crepúsculo, como para desprender tanto quanto possível o homem da sua carnalidade, e não lhe perpetuar mais que a semelhança do espírito». Muitas destas afirmações se poderiam aplicar às pinturas que Columbano fez depois de 1889 e sobretudo ao retrato de Antero de Quental.
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Texto de Margarida Elias.