sábado, 19 de julho de 2014

Lá vem a Nau Catrineta...


Almada Negreiros, Lá vem a Nau Catrineta que traz muito que contar (1946-1948, Gare Marítima de Alcânara, Lisboa - in Restos de Colecção)
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Lá vem a nau Catrineta 
Que tem muito que contar! 
Ouvide, agora, senhores, 
Uma história de pasmar. 

Passava mais de ano e dia 
Que iam na volta do mar 
Já não tinham que comer, 
Já não tinham que manjar. 

Deitaram sola de molho 
Para o outro dia jantar; 
Mas a sola era tão rija 
Que a não puderam tragar. 

Deitaram sorte à ventura 
Qual se havia de matar; 
Logo foi cair a sorte 
No capitão general. 

Sobe, sobe, marujinho, 
Àquele mastro real, 
Vê se vês terras de Espanha, 
As praias de Portugal. 

"Não vejo terras de Espanha, 
Nem praias de Portugal; 
Vejo sete espadas nuas 
Que estão para te matar". 

Acima, acima gajeiro, 
Acima ao tope real! 
Olha se enxergas Espanha, 
Areias de Portugal 

"Alvíssaras, capitão, 
Meu capitão general! 
Já vejo terra de Espanha, 
Areias de Portugal.

Mais enxergo três meninas 
Debaixo de um laranjal: 
Uma sentada a coser, 
Outra na roca a fiar, 
A mais formosa de todas 
Está no meio a chorar". 

-Todas três são minhas filhas, 
Oh! quem mas dera abraçar! 
A mais formosa de todas 
Contigo a hei-de casar. 

"A vossa filha não quero, 
Que vos custou a criar". 

- Dar-te-ei tanto dinheiro, 
Que o não possas contar. 

"Não quero o vosso dinheiro, 
pois vos custou a ganhar! 

- Dou-te o meu cavalo branco, 
Que nunca houve outro igual. 

"Guardai o vosso cavalo, 
Que vos custou a ensinar". 

- Dar-te-ei a nau Catrineta 
Para nela navegar.

"Não quero a nau Catrineta 
Que a não sei governar". 

Que queres tu, meu gajeiro, 
Que alvíssaras te hei-de dar? 

"Capitão, quero a tua alma 
Para comigo a levar". 

Renego de ti, demónio, 
Que me estavas a atentar! 
A minha alma é só de Deus, 
O corpo dou eu ao mar. 
Tomou-o um anjo nos braços, 
Não o deixou afogar.

Deu um estouro o demónio, 
Acalmaram vento e mar; 
E à noite a nau Catrineta 
Estava em terra a varar.
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Almeida Garrett, Romanceiro.

2 comentários:

ana disse...

Gosto muito deste poema e do Almada Negreiros.:))
Beijinho.

Margarida Elias disse...

Eu também, Ana! Beijinhos!