Jacopo Bellini, Retrato de perfil de um rapaz (1470, National Gallery of Art, Washington)
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Desconheço se alguém já fez esta análise, mas há uns tempos veio-me à mente relacionar um livro do Bruno Latour com a arte. O que ele diz é:«A hipótese deste ensaio (...) é que a palavra “moderno” designa dois conjuntos de práticas totalmente diferentes que, para permanecerem eficazes, devem permanecer distintas, mas que recentemente deixaram de sê-lo. O primeiro conjunto de práticas cria, por “tradução”, misturas entre gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura. O segundo cria, por “purificação”, duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos, de um lado, e dos não-humanos, de outro. (...)». - Bruno Latour, Jamais fomos modernos. Ensaio de Antropologia Simétrica, Rio de Janeiro, Editora 34, 1994 (1.ª ed. Paris, La Découverte, 1991), p. 16.
Caravaggio, Natureza morta com flores e frutos (1601, Borghese Gallery, Rome)
Na minha interpretação, ele parte do princípio que o pensamento moderno nasceu da vontade de separar os vários campos do saber. Por isso, ele também afirma:
«(...) A espiritualidade foi reinventada, isto é, a transcendência do Deus todo-poderoso no foro íntimo sem que Ele interviesse em nada no foro exterior. Uma religião totalmente individual e espiritual permitia criticar tanto a dominação da ciência quanto a da sociedade, sem com isto obrigar Deus a intervir em uma ou na outra. Tornava-se possível, para os modernos, serem ao mesmo tempo laicos e piedosos» (p. 39).
Albrecht Durer, View of Trente (1494)
O livro dele coloca a questão se alguma vez essa separação, entre a natureza objectiva e a sociedade livre, foi efectivamente feita, porque existem, sobretudo actualmente, seres híbridos, que não correspondem exactamente a nenhum campo, onde o «sistema de purificação» falha.
Paolo Uccello, Victory over Bernardino della Ciarda (1438)
Mas, o que me levou a pensar de novo neste livro é se a progressiva separação dos géneros na arte, que se produziu sobretudo desde a Idade Moderna (Renascimento) não é fruto da mesma vontade de purificação. De facto, tanto o retrato, como a paisagem, a natureza-morta, a pintura animalista, a pintura de costumes, de história e religiosa, e todos os subgéneros associados a cada uma delas, parecem ser fruto do mesmo desejo de separar os objectos de análise e os temas. Resta saber (e penso que sim), se também aqui a purificação falhou, o que conduziu a misturas de géneros. E basta pensar, por exemplo, na paisagem, que antes do séc. XIX estava quase sempre associada a significados religiosos ou simbólicos - sendo raras as excepções.
2 comentários:
Lateralmente, penso que, muitas vezes, se "classifica" para efeitos de melhor "arrumar", do ponto de vista humano, as coisas e as artes. Sempre achei curioso, para não dizer estranho, que Óscar Lopes, na sua "História da Literatura", denominasse toda a produção literária, de 1800 até aos nossos dias, sob o amplo nome de: Romantismo (como aparece ao alto nas páginas...).
Uma boa semana.
APS - Também já reparei nisso e confesso que acho um pressuposto interessante - acho que insinua que somos ainda românticos, o que de certo modo, é verdade. Boa tarde!
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