Julius Olsson, Gulls at Low Water, Carbis Bay, Cornwall (da Gandalf's Gallery).
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«Era uma vez uma pequena pedra que se soltara do cimo de uma montanha, nem ela sabia quando, e rolara encosta abaixo, misturada a muitas outras. A pequena pedra, filha de uma pedra grande, neta de um pedregulho, bisneta de um pedreira, estacionara com muitas irmãs, primas e família, numa cova de cascalho, à beira da estrada.
Delas não haveria história para contar, se um dia um garoto à cata de pedrinhas para pedrinhas para atirar com o estilingue, não a escolhesse, com mais umas tantas… Assim ela conheceu o calor de uma algibeira. Por pouco tempo, aliás.
De repente, viu-se a voar pelas alturas. Ia, talvez contra vontade, em direcção a um pardal, pousado num parapeito.
Felizmente, o pardal escapuliu, mas a pedra, que seguia um único sentido, foi bater numa vidraça, daquelas que se estilhaçam a qualquer sobressalto. Deveriam inventar vidro mais resistente !
Varrida com os cacos pela zangada dona de casa, onde estava a janela, a pedrinha caiu depois para trás de um muro derrubado. Agora, ela já tinha que contar.
Mas a história não ficou por aí. A vida de uma pedra é muito dura. Esta sofreu pontapés, andou aos tropeções, até que, ao fim de muitos anos, quando estava ela debruçada na margem de um rio, veio
outro garoto e atirou-a na água. Queria ver se ela dava um salto como um peixe.
A pedra, com o balanço, voou pelo ar, como se tivesse esquecido da lei da gravidade. Roçou a superfície plena da água, uma, duas, três vezes, até não conseguir mais. E afundou. Rolou na areia do fundo, ao sabor da corrente, que no inverno era muito forte. Quanto tempo? O tempo não era assunto da sua conta.
O que interessa saber é que a pedra, rolada pelo rio, foi parar a uma praia. Estava menor, mas muito mais bonita. Muito polida e brilhante, não parecia a mesma.
As mãos de um menino pegaram-na e levaram-na com ele. Iria voar, outra vez, atrás de um pardal, saltar sobre as águas, a fingir de peixe? Nada disso.
A pedra já merecia descanso. Foi colocada num vaso, sobre uma mesa onde também repousavam conchas, bolas de gude, corais e outros “tesouros” semelhantes. Ainda deve estar lá…
O que ela nunca saberá é que o menino que a trouxe da praia, o menino que a lançou ao rio e o menino que a atirou com o estilingue são os três como se fosse o mesmo menino: neto, filho, avô, surpreendidos no mesmo momento da infância.
Acontece…
São estas coincidências que movem o destino das pedras».
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6 comentários:
Belissimo texto! E da que pensar! :-)
Bom Domingo! :-)
Obrigada! Bom Domingo!
Viagem curiosa e criativa! António Torrado é mestre nestas coisas da imaginação.
Beijinhos e boa semana, Margarida!
[Li no blogue da ana uma menção ao seu trabalho de doutoramento. Deixo-lhe os meus parabéns e a minha admiração por esta homenagem à cutura portuguesa!]
Sara: Gosto muito de António Torrado. As histórias dele são geralmente muito divertidas e imaginativas. Obrigada, beijinhos e boa semana!
Margarida,
Uma beleza este post. :)
Gosto muito de António Torrado, as histórias são sempre bem concebidas e imaginativas.
Beijinho.:)
Obrigada Ana! Concordo consigo. Bjs!
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