William McGregor Paxton, The Front Parlor (1904, in 19th century American Paintings).
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Hoje está (finalmente) um dia de sol primaveril, embora frio. Pensei que em vez desta pintura, que eu já tinha pensado para o post de hoje, deveria colocar uma mais primaveril. Contudo, esta é primaveril (apesar de ser um interior) - pelas flores e pela luz, pelo vestido branco e leve da senhora, que lê calmamente uma carta. O próprio espaço é alegre e luminoso - o tapete florido, o papel de parede - evocam uma imagem de pacífica felicidade.
Contudo, mantive a imagem não pelo facto de evocar a primavera, mas sim por outras razões, sobre as quais tenho meditado nos últimos tempos. Por um lado, o mobiliário de fim de século, clássico e de linhas simples. É um ambiente tipicamente burguês e sem ostentação - que não mostra contacto com as novidades da Arte Nova que nesta altura (c. 1900) começavam a ter peso no gosto contemporâneo. Esse ligeiro desfasamento, neste caso, demonstra algo em que ando a matutar, que é o facto de ser normal (na minha opinião) que as pessoas mantenham apreço por objectos do passado - quer por razões simbólicas (prestígio), quer por razões económicas (aproveitamento daquilo que já possuem), quer por questões afectivas, ou ainda por questões estéticas - gostam delas.
Aliás, noutros tempos era normal guardar coisas, arranjá-las, alterá-las, reformá-las, e só as deitar fora em último caso. Era normal que o tempo, a moda, os interesses, fossem longos. Era normal escrever e ler cartas - esperar pelo correio, que era lento.
Vivia-se de acordo com o tempo natural, o dia e a noite, as estações do ano, as idades. As crianças tinham tempo para brincar - excepto aquelas que (por razões sobretudo económicas) tinham de trabalhar ou casar cedo (nomeadamente as meninas que aos 13 anos já eram vistas como mulheres).
Tenho uma certa inveja, apesar de saber que nem tudo eram rosas, do tempo lento de outros tempos. Tenho pena dos meus filhos passarem tanto tempo na escola e ainda chegarem a casa e terem trabalhos de casa. Apesar de termos mais esperança de vida, passarmos o tempo a correr de um lado para o outro (de carro para ser mais rápido!). Quando temos tempo, na reforma, muitas vezes já não temos saúde para gozar o tempo. Aí o tempo volta a ser lento, mas muitas pessoas vivem isoladas e com dificuldades económicas. Nada se assemelham com as velhinhas dos filmes ingleses que iam passear para Florença:
Tenho uma certa inveja, apesar de saber que nem tudo eram rosas, do tempo lento de outros tempos. Tenho pena dos meus filhos passarem tanto tempo na escola e ainda chegarem a casa e terem trabalhos de casa. Apesar de termos mais esperança de vida, passarmos o tempo a correr de um lado para o outro (de carro para ser mais rápido!). Quando temos tempo, na reforma, muitas vezes já não temos saúde para gozar o tempo. Aí o tempo volta a ser lento, mas muitas pessoas vivem isoladas e com dificuldades económicas. Nada se assemelham com as velhinhas dos filmes ingleses que iam passear para Florença:
... ou com a Miss Marple a fazer investigações detectivescas na sua aldeia ...
Antigamente o tempo era medido pelo sol, pelos sinos das igrejas, pelos relógios camarários. Não era um mar de rosas (é certo), mas parece-me que havia mais tempo (e ar) para respirar.
Confesso que me faz confusão esta necessidade actual de estar em permanente mudança e actualização, em perpétuo movimento. Creio que desde a revolução industrial e sobretudo depois do século XX, houve um aceleramento da temporalidade que se torna (para mim, pelo menos) cansativa, obsessiva.
Ainda outro dia, conversando com o meu marido, ele referia que a ponte Vasco da Gama fora construída com bons materiais para durar cento e cinquenta anos. Ele mostrava-se impressionado com os engenheiros que fizeram aquela ponte.
Eu fiquei siderada: cento e cinquenta anos não são nada! Noutros tempos os objectos eram construídos de modo a durarem (pelo menos idealmemte) uma eternidade - muitos pereceram, é certo - mas as pontes romanas (mesmo com potenciais restauros e alterações) ainda subsistem ao fim de dois mil anos. Os engenheiros romanos é que me impressionam.
A conversa fez-me lembrar um texto que li e que vou agora aqui citar:
Ainda outro dia, conversando com o meu marido, ele referia que a ponte Vasco da Gama fora construída com bons materiais para durar cento e cinquenta anos. Ele mostrava-se impressionado com os engenheiros que fizeram aquela ponte.
Eu fiquei siderada: cento e cinquenta anos não são nada! Noutros tempos os objectos eram construídos de modo a durarem (pelo menos idealmemte) uma eternidade - muitos pereceram, é certo - mas as pontes romanas (mesmo com potenciais restauros e alterações) ainda subsistem ao fim de dois mil anos. Os engenheiros romanos é que me impressionam.
A conversa fez-me lembrar um texto que li e que vou agora aqui citar:
«Marco Polo descreve uma ponte, pedra sobre pedra.
- Mas qual é a pedra que sustém a ponte? - pergunta Kublai Kan.
- A ponte não é sustida por esta ou aquela pedra - responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas formam.
Kublai Kan permanece silencioso, reflectindo. Depois acrescenta: - Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa. Polo responde: - Sem pedras não há arco.» *
As pedras são essenciais, duram. Seja como for, não consigo deixar de sentir que as ruínas de uma igreja de pedra, como o Convento do Carmo, são mais belas e apelativas ao olhar do que as ruínas de um edifício de betão. E os livros em pergaminho com iluminuras da época medieval duram mais e são muitas vezes mais belos do que os livros que hoje se vendem e se desfasem com um simples manuseamento.
O tempo era diferente antigamente - como se vê nesta pintura, tão pacífica e repousante. Há uma certa paz interior transmitida por esta temporalidade lenta , que hoje quase não existe. Lembro com saudade os lanches em casa da minha avó, quando iam lá as sobrinhas dela - lanches de chá, bolinhos e pão com manteiga, acompanhados pelas conversas das senhoras de cabelos grisalhos, de outros tempos ...
A este propósito, coloco aqui outra citação, que reflecte bastante o que eu penso sobre o "contentamento" (pelo menos, para a generalidade das pessoas, em que eu também me incluo):
A este propósito, coloco aqui outra citação, que reflecte bastante o que eu penso sobre o "contentamento" (pelo menos, para a generalidade das pessoas, em que eu também me incluo):
«Who is wise? He that learns from everyone. Who is powerful? He that governs his passions. Who is rich? He who is content. Who is that? Nobody».
---Benjamin Franklin.
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* Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, Lisboa, Editorial Teorema, 2003, p. 85, citado por Bárbara Coutinho, «Um Desenho Global no Coração de Lisboa», in Nacional e Ultramarino, O BNU e a arquitectura do poder: entre o antigo e o moderno, Lisboa, MUDE, 2012, p. 14.
7 comentários:
Este é um dos textos de que mais gostei de ler, no seu Blogue. Faz "pensar com ele", o que é coisa rara de encontrar pelo espaço ligeiro da net. É por esse lado ligeiro (e leviano) que caracteriza a grande maioria dos Blogues que pululam no ciberespaço que eu, apenas, não concordo, quando a Margarida diz: "todas as pessoas" mantêm "apreço por objectos do passado". Porque a pressa em acompanhar a novidade é tanta, que não fruem o melhor, nem se apercebem daquilo que, até num futuro longínquo, será sempre uma maravilha da mão humana.
Obrigado por me ter feito pensar consigo.
Obrigado eu APS. É verdade - eu acho "normal" ter apreço pelo passado (e os seus objectos), mas julgo que há quem passe pela vida sempre em necessidade de mudança e só se importe com o que ainda não tem.
Agora até me emocionei ao ler este texto, Margarida! Revi-me tanto nele...gosto tanto do tempo mais lento, mais conforme à nossa naturalidade (não é por acaso, que, actualmente, há tantos burn-outs, depressões, etc). Nós ainda somos desse tempo, ainda o apanhámos (direi que até meados de 80, ainda o senti assim).
Falas do hábito de tomar chá e das velhinhas de cabelo grisalho - ora aí está um hábito que associo muito à minha avó e às suas primas e ainda à minha mãe. Ainda ontem, ao telefone, a minha mãe me dizia: "Ësta tarde, fui tomar chá com a prima Emília e a filha dela, a prima Beatriz. A prima Emília fez ontem 89 anos. Continua bem e até foi ela que preparou o chá e pôs a mesa." E a propósito disto, pensei uma série de coisas. Uma delas, foi: " Que pena eu não estar lá também. ", pois adoro esta prima da minha avó (e já é a única prima ainda viva); segundo, tenho imensa pena que este ritual esteja praticamente em vias de extinção, e terceiro, o quanto gosto desta fruição lenta, deste gosto em receber, do prazer das conversas sobre outros tempos.
Escusado será dizer que adoro a Miss Marple (tendo sido a actriz Joan Hickson a minha favorita a desempenhar o papel).
Quanto ao conservar peças de família, sem dúvida. A casa ganha história, continuidade, alma. Por isso, gosto tanto de visitar solares. É muito bonito manter peças antigas, conservá-las e integrá-las no nosso espaço: um roupeiro, um relógio, um livro, fotografias, mantas, bordados...
Um post lindíssimo, Margarida!! Gostei mesmo muito!
Muitos beijinhos!
Obrigada Sandra! Também pensei em ti ao escrevê-lo, porque sei que também pensas assim. Beijinhos!
:-)
Margarida,
Um belo texto. Também me revejo em certas passagens e lamento a aceleração em que somos obrigados a viver, sem tempo para respirar e aproveitar o dia na sua totalidade.
Beijinho grato. :)
Obrigada Ana! Bjns!
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