quinta-feira, 19 de maio de 2022

«... não enumero a todos porque me aborrece...»

Flora. Divindade itálica. Flora ou a Primavera. Fresco (Séc. I I. d. C., Castellammare di Stabia (Stabiae). Museo Archeologico Nazionale, Nápoles)
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Descobri outro dia esta frase, de Santo Agostinho, e achei-lhe muita graça. Fica aqui o contexto:

«Acharam que nem sequer deviam confiar a um só deus os trabalhos de campo mas entregaram os plainos à deusa Rusina (ms — campo), os cumes (juga) dos montes a Jugatino, as encostas (collis) à deusa Collatina, os vales a Valónia. Nem mesmo puderam reservar só para Segetia as ceifas (segetes) — mas puseram a deusa Seia a presidir às sementes, enquanto estão debaixo da terra; a deusa Segetia, quando já estão acima da terra até à ceifa; a deusa Tutilina, à conservação do grão colhido e recolhido para se conservar em segurança (tuta). A quem é que não pareceria suficiente aquela Segetia a todo o desenvolvimento da messe desde que nasce até que a espiga amadureça? Tal não bastou porém a homens amantes de uma multidão de deuses — e assim prostituíram a sua mísera alma à turba de demónios, desprezando o casto abraço do único Deus verdadeiro. Puseram por isso Prosérpina a presidir à germinação do trigo, o deus Nóduto aos gomos e nós (nodus) dos caules, a deusa Volutina ao involtório das folhas; a deusa Patelana à abertura dos folículos para que a espiga passe; a deusa Hostilina, quando as espigas vão igualando suas barbas, pois os antigos para “igualar” (aequare) usavam o verbo hostire; a deusa Flora à floração do trigo; o deus Lactumus quando está leitoso; a deusa Matuta à maturação; a deusa Runcina quando se arrancam (iruncare), isto é, quando o levam da terra. E não enumero a todos porque me aborrece o que a eles não causa vergonha». 
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Santo Agostinho, in A Cidade de Deus, Livro IV, Capítulo VIII, in Filomena Barata (2019). «As espécies vegetais de Miróbriga e a Mitologia: Referências literárias e arqueológicas». Abelterivm, Volume IV, 2019, pp. 18-19.

2 comentários:

MR disse...

No primeiro ano da faculdade li Santo Agostinho. Gostei muito, principalmente porque não estava à espera. A cidade de Deus foi, para mim, uma agradável surpresa. Passei muitos dias na BN a lê-la numa ed. francesa.
O fresco é uma beleza.
Bom dia!

Margarida Elias disse...

MR - Nunca li, mas fiquei com vontade. Bom resto de Domingo!