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João Cristino da Silva (1829-1877) foi um dos mais destacados pintores de paisagem da sua geração. Estudou na Academia de Belas-Artes e fez parte do grupo de artistas liderado por Tomás da Anunciação que se insurgiu contra o ensino académico, defendendo um maior contacto com a Natureza. A pintura Cinco Artistas em Sintra de Cristino da Silva é, para além de uma das obras fundamentais do Romantismo português, um retrato de cinco importantes artistas da época e um documento histórico de um lugar que é hoje Património Mundial. O sítio eleito liga-se ao tempo cultural do quadro, pois é sabido que Sintra exerceu um enorme fascínio no espírito romântico» (Paula Dias Carneiro).
A composição teve como objectivo a participação na Exposição Universal de Paris de 1855, revelando-se como uma homenagem ao mestre Tomás da Anunciação, chefe de fila dos pintores de paisagem, o qual observa e desenha a paisagem em frente de si. Metrass, atrás dele, olha para o espectador, estando ambos rodeados por um grupo de gente da terra, que observa o apontamento de Anunciação. O segundo grupo, num plano secundário à direita, é apenas formado por artistas: o próprio Cristino, encostado a um rochedo e tirando apontamentos da paisagem, olhando para o espaço ocupado pelo espectador; José Rodrigues a folhear um álbum, sentado no chão, e o escultor Vítor Bastos, em pose, perto de Cristino.
A paisagem foi captada do natural e trabalhada no atelier, como era costume. Contudo, em parte, o desfecho é provavelmente imaginado, existindo cruzamento de ângulos e perspectivas, de maneira a obter um cenário ideal para os artistas, imortalizados junto de uma enorme fraga, ela própria símbolo de perenidade. Mesmo que fosse um lugar real e veramente transmitido para a tela, é hoje difícil de o encontrar visto que a paisagem mudou, por acção do homem e da própria natureza. Independentemente disso, não devemos olvidar que, como escreveu o historiador Simon Schama, as paisagens «são cultura antes de serem natureza; construções da imaginação projectadas através da madeira, da água e da pedra».
Em Cinco Artistas em Sintra a paisagem mostra uma zona árida da serra onde avulta um rochedo, situado por trás das figuras, dando-lhes «uma sensação de orgânica coesão» (Maria de Aires Silveira). Estes grandes penedos existem nalgumas zonas da serra de Sintra, como por exemplo em Santa Eufémia. Cristino representou muitas destas pedras que existiam a caminho da Pena, por vezes aparecendo como entidades próprias, autênticos gigantes de pedra, nalguns casos contrastando solenemente com minúsculas personagens, que junto deles se abrigavam ou por ali passavam. Este confronto da pequenez do homem perante a natureza é característico do Romantismo alemão e dá uma ideia de sublime a estas pinturas de Cristino.
Neste quadro de Cristino o pitoresco domina, na medida em que o penedo, de notória horizontalidade, é quase à dimensão dos homens. São as pessoas que se destacam, desta vez juntando artistas e aldeãos. O próprio cenário reforça esse contraste, pois opõe o Palácio da Pena, quase invisível, distante e envolto na bruma, à paisagem agreste que o circunda, onde dominam enormes rochedos. Faz-se assim um paralelismo entre os artistas e a Pena, sinais de civilização e os aldeãos e a terra, símbolos de ruralidade.
O valor simbólico do quadro parte do lugar, pois «para os românticos o “espírito do lugar” é justamente aquilo que pode infundir uma paisagem de um valor diferencial e simbólico» (Helena Buescu). O Palácio da Pena, recentemente edificado pelo rei D. Fernando II, estava ligado ao Romantismo. O Palácio fora construído no local onde existia um convento jerónimo abandonado, e já antes havia inspirado artistas estrangeiros, como William Burnett ou Celestine Brélaz que representaram a serra encimada pelo convento. Sintra chamava artistas e poetas para as suas paragens, sendo admirada pela sua paisagem, a qual oferecia um panorama de rara beleza. Isso se pode avaliar pelas palavras de Lord Byron: «Oh! Em que variegado labirinto de montes e vales surge agora o glorioso Éden de Sintra! (…). Trepar depois a senda tortuosa e voltar de quando em quando a cabeça à medida que subimos…Cresce a altura da fraga, e as graças crescem». É de crer que é esta a realidade que Cristino procurou retratar, colocando a Pena envolta em brumas e junto de um céu enevoado, como que fazendo a ligação entre o céu e a terra.
Outras pinturas de Cristino mostram o caminho para a Pena. Nessas pinturas é o Palácio que sobressai no seu esplendor, com a torre em destaque. O primeiro plano é preenchido por penedos, mostrando uma paisagem agreste, aberta por um caminho que permite ultrapassar o obstáculo da natureza de forma a chegar ao palácio acastelado, sublinhando-se assim o seu aspecto de paragem civilizada no meio do deserto. É tipicamente romântica esta justaposição de um «monumento histórico transitório» com a «natureza eternamente duradoura» (Norbert Wolf).
A paisagem figurada por Cristino nos seus retratos de Sintra viria a ser transformada. O local era já admirado, mas não existia o arvoredo denso que veio a receber com a plantação do Parque da Pena. Tal como escreveu, em 1886, Ramalho Ortigão, foi D. Fernando que rodeou o castelo da Pena de «jardins admiráveis», sendo anteriormente um «terreno inculto e baldio». Pela acção do homem o local iria ser transformado e o Romantismo que vinha do contraste entre o homem e o nada, o Palácio e a pedra, foi substituído pelo Romantismo do próprio bosque, que fortalece o carácter devaneador do local. A dureza das pedras impressa nas pinturas e desenhos de Cristino foi dissimulada, mas nem por isso o Palácio surge menos inacessível, envolto nas brumas como se fora o castelo do Graal. Richard Strauss diria acerca do Parque e do Palácio: «Este é o verdadeiro jardim de Klingsor – e lá no alto está o castelo do Santo Graal».
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Texto de Margarida Elias.
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