domingo, 24 de março de 2013

A Anunciação I

Orazio Gentileschi, Anunciação (c. 1623).
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Todas as obras de arte com temas religiosos e, pelo menos, até ao período contemporâneo, guardam um significado simbólico que se observa na maneira como os temas são interpretados pelo artista - com influência maior ou menor dos encomendadores ou destinatários. Nas "Anunciações" este facto torna-se mais aliciante, pois na sua maioria, cada uma das pinturas com este tema tem em si uma miríade de detalhes, cujo significado enriquece e aprofunda a leitura das composições. Encontrei na internet três textos que abordam esta questão, os quais irei utilizar na interpretação desta extraordinária Anunciação de Orazio Gentileschi (1563-1639).
Numa primeira leitura vemos a Virgem ouvindo e acatando as palavras de São Gabriel, ajoelhado à sua esquerda. Dentro de um esquema tradicional, a Virgem está do lado interior, mais recatado; o Anjo está do lado que fica mais próximo da janela, junto da entrada de luz. A Virgem está de pé, não se encontra entronizada, o que é testemunho de uma tradição que vinha desde o final da Idade Média, sobretudo devida aos Franciscanos, que defendiam uma imagem de Maria mais humanizada. A representação de Nossa Senhora num quarto, num ambiente quotidiano, tem a ver também com uma mística que reforça a importância da sua humildade. São Bernardo escreveu numa homilia acerca da Anunciação: «A virtude da virgindade é digna de louvor, mas a humildade é mais necessária». 
A pomba, que se vê a entrar pela janela aberta, no canto superior direito, é, como é sabido, imagem do Espírito Santo. O facto de entrar com a luz, em direcção à orelha de Santa Maria, simboliza o acto da concepção, que tomou lugar no ouvido da Virgem: o Verbo encarnou pela Palavra Divina, isto é pela audição. Maria tem o Livro fechado e encostado junto ao peito, em sinal de meditação sobre a Palavra de Deus, pois o Livro evoca a profecia de Isaías (7:14) que anuncia a vinda do Salvador. O Anjo Gabriel, mensageiro de Deus, leva na mão um lírio branco, símbolo de pureza, que, neste caso, vem substituir o ceptro, símbolo do poder de Deus. A presença desta flor pode ser entendida ainda como uma alusão à Primavera, tempo privilegiado de flores, dado que no Calendário Juliano, esta estação tinha início no dia 25 de Março, dia em que se festeja a Anunciação. O pano vermelho atrás de Maria será aqui uma evocação do Drap d´honneur. Reforça a autoridade de Maria e é possivelmente uma sugestão à ideia de que o Mistério da Encarnação deveria permanecer oculto ao demónio. A janela é um detalhe real que permite identificar o local por onde entra a luz, interpretada como o próprio Espírito Santo. É de notar também na coluna que separa o espaço da Virgem do espaço do Anjo, que fará parte da cama de Santa Maria (do dossel) e é também símbolo de Jesus. Por fim, devemos notar na cama, de lençóis brancos e imaculados, que indiciam humildade pela ausência de qualquer elemento decorativo. A cama introduz igualmente uma alusão ao Mistério da Concepção por acção do Espírito Santo.
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Bibliografia consultada:
Luís Alberto Esteves Casimiro, «Iconografia da Anunciação: símbolos e atributos», in Revista da Faculdade de Letras, I Série, Volume VII-VIII, Porto 2008-2009, pp. 151-174. http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/9411.pdf
Margaret B. Freeman, «The Iconography of the Merode Altarpiece», http://www.metmuseum.org/pubs/bulletins/1/pdf/3257688.pdf.bannered.pdf

3 comentários:

ana disse...

Continuidade da beleza da postagem anterior.
Beijinho. :)

Margarida Elias disse...

Obrigada!!! :)

LuisY disse...

Margarida

Mais uma vez felicito-a pelo bom gosto demonstrado nas escolha das imagens.

No entanto, a flor que o anjo Gabriel oferece a Maria não é um lírio, mas sim uma açucena, uma flor muito antiga, usada nos jardins europeus muito antes dos descobrimentos. É uma das flores mais pintadas por Josefa de Óbidos.

Tal como o lírio é um símbolo de pureza associado à Virgem Maria. Em Espanha conhecem-na até por azucena de la Virgen. Aqui em Portugal a flor também é designada por cajado de S. José e é um dos atributos do pai do menino Jesus. Santo António também segura uma açucena. Julgo que a confusão com o lírio vem do nome latino da Açucena, Lilium candidum, que se confunde facilmente com o lírio.

No meu blog já publiquei imagens de Açucenas http://velhariasdoluis.blogspot.pt/2011/11/fragmento-de-um-santo-antonio-de-lisboa.html

É aliás uma flor que se recomenda para todos os jardins, pois além do seu simbolismo cheio de história não precisa de ser regada.

Um abraço