quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

D' "A Selva"

Ilustração de Portinari (1955)
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Acabei ontem de ler A Selva de Ferreira de Castro, com ilustrações de Portinari (publiquei aqui as duas de que gostei mais). O que mais me marcou, para além do horror daquele mundo, foi a selva que parece querer expulsar a civilização ocidental de dentro de si - o que pode, hoje em dia, trazer muitas interpretações dada a evolução da ecologia: «(...) Nada a assemelhava às últimas florestas do velho mundo, onde o espírito busca enlevo e o corpo e o corpo frescura; assustava com o seu segredo, com o seu mistério flutuante e as suas eternas sombras, que davam às pernas nervoso anseio de fuga» (p. 104). Admirei a descrição de algumas árvores, nomeadamente a sapopema (pp. 95-96):
«Erguia-se agora, à margem do "varador", alta gruta de raízes, que uma só árvore lançava. Templo imaginário de povo que inspirasse a sua estética arquitectónica em esquisitos monumentos orientais, oferecia a quem nele se recolhesse postigos inumeráveis, portas de linhas irregulares e salas onde seis homens podiam estender a toalha e almoçar, ou puxar de cartas para jogo que ludibriasse as horas, em longos dias de chuva.
É uma sapopema - explicou Firmino, vendo Alberto a observar o raizedo enorme, que se espalmava em lâminas, grossas como paredes, e se retorcia também, decorativamente, em cordame manuelino. - Se um dia você se perder, bata neste pau, que logo algum seringueiro lhe responde».

Impressionou-me, por fim, a evolução de Alberto, que, passando por uma situação que se poderia chamar de iniciática, ganha humanidade: «Em muitas das suas expressões, a vida rastejava ainda, em tanto mundo e ali mesmo, à altura dos pés humanos; e não era decerto com os velhos processos, já experimentados durante dezenas de séculos, que ela poderia ascender aos níveis que o cérebro entrevia. Não era, decerto, no que estava feito, era no que estava por fazer, que o homem viria a encontrar, talvez, o melhor de si próprio» (p. 224).
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Ferreira de Castro, A Selva, Guimarães & C.ª Editores, 1982 (34.ª ed.).
P.S. Obrigada MR pelo empréstimo.

6 comentários:

APS disse...

Um dos grandes romances portugueses do século XX, que eu já li tarde, por volta dos meus 40 e tal anos...
Com uma ambiência fortíssima que nos penetra, da leitura. Acresce o facto, que um Tio meu (muito querido), por afinidade, fez essa experiência, indo com pouco mais de 10 anos, da Póvoa de Varzim para Manaus. E de lá regressou, com 30 e tal, muito envelhecido, de aspecto.
Um bom dia.

Margarida Elias disse...

APS - Deve ser uma experiência que eu, certamente, não desejaria ter. Depois de ler este livro, se alguma vez for à Amazónia (por vontade), é como turista. Bom dia!

MR disse...

É um romance um bocado autobiográfico. As ilustrações são maravilhosas.
Bom dia!

Margarida Elias disse...

MR - Queria devolver-lhe... Está na próxima semana na BN? Bom dia!

Rui Luís Lima disse...

Um livro que tenho de ler, apenas conheço "A Missão" que adorei e me ficou na memória para sempre desde os tempos da adolescência.
Bom Domingo!

Margarida Elias disse...

Mister Vertigo - Nunca li "A Missão" - já vi que há uma edição com ilustrações da Sara Afonso, que deve ser lindíssima. Bom Domingo!